A evolução tecnológica sobrevinda nas
últimas décadas impactou sensivelmente as searas econômica e financeira,
originando novos institutos que demandam adequado tratamento jurídico a fim de
que tais inovações sejam utilizadas de modo positivo e proveitoso à sociedade
como um todo. Dentre tais inovações se destacam as moedas virtuais ou
"criptomoedas", de que são exemplos o bitcoin, dogecoin, litecoin, stablecoins, cardano, ether, entre outras.
Dentre os variados aspectos de análise do tema interessa-nos no presente
momento o aspecto tributário, em relação ao qual algumas considerações
afiguram-se dignas de nota sem, todavia, qualquer pretensão conclusiva ou
exaustiva de nossa parte, inclusive pela natural impossibilidade de fazê-lo no
atual estágio de desenvolvimento do tema. E mesmo no tocante ao aspecto
tributário, somente alguns pontos serão aqui comentados na medida em que
inviável uma abordagem exaustiva sobre o tema em tão poucas linhas.
Em apertada síntese, as
"criptomoedas" (cryptocurrency)
são moedas digitais criadas em uma rede de armazenamento (blockchain) onde ocorre
seu registro, verificação, validação e transação de forma descentralizada, sem intermediação
ou controle por parte de um órgão gestor ou um país específico. Referida
tecnologia blockchain (cadeia
de blocos) é que permite um gerenciamento autônomo e descentralizado baseado na
criptografia, um dos pilares de tal tecnologia tendente a garantir a proteção
das informações respectivas e segurança dos dados armazenados e transmitidos ao
longo da cadeia entre os vários "nós" (nodes) da rede [1].
Na prática, a correta ou precisa
identificação dessa nova realidade é de todo crucial porque dela depende a
consequente identificação dos respectivos efeitos fiscais, de modo que,
conforme se qualifique como moeda, propriedade, commodities, valores
mobiliários etc., diversas serão as implicações tributárias.
No Brasil, as
"criptomoedas" não são consideradas moedas tal qual
o Real que,
por força da legislação federal vigente [2],
constitui a única moeda oficial de curso legal no país [3];
também não são consideradas "moedas eletrônicas" para fins da
Lei nº 12.865/2013, conforme expressa orientação do Banco Central (Bacen) [4]; outrossim, não são consideradas valores mobiliários consoante
orientação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) [5],
entendimento que se reflete também na jurisprudência.[6] No
panorama normativo atualmente vigente, acreditamos ser possível a qualificação
jurídica das criptomoedas como bens
móveis incorpóreos por inteligência do artigo 82 do
Código Civil, passíveis de transmissão por tradição realizada eletronicamente
de forma descentralizada e diretamente entre as partes envolvidas (peer-to-peer) [7]. Mais precisamente, seriam representações digitais de
valores ou ativos financeiros cuja negociação e titularidade geram efeitos
fiscais [8].
Por não serem consideradas moedas, moedas eletrônicas nem valores mobiliários,
cremos restar afastada, ao menos no presente momento, qualquer possibilidade de
sujeição das criptomoedas ao imposto sobre operações financeiras (IOF) por
inteligência do artigo 63 do CTN, porquanto não se divisando nas respectivas
transações qualquer materialidade própria desse imposto federal que, como se
sabe, se refere a operações de crédito, seguro, câmbio, títulos ou valores
mobiliários e ouro, cinco materialidades de incidência que não correspondem
tecnicamente às transações com criptomoedas, inviabilizando de conseguinte
referida imposição.
No tocante ao imposto de renda, afigura-se
viável sua incidência quando, após a aquisição de criptomoedas, sobrevier um
ganho de capital em razão de sua posterior alienação a terceiros, ex vi do
artigo 128 do Decreto nº 9.850/2018 c/c o artigo 3º, §2º, da Lei nº
7.713/1988, para tanto observando-se a variação progressiva de alíquotas
prevista no artigo 21 da Lei nº 8.981/1995 [9],
em qualquer caso sem prejuízo da isenção prevista no artigo 22 da Lei nº
9.250/1995 c/c os artigos 35, VI, a,
nº 2, e 133, I, b,
do Decreto nº 9.850/2018, que preveem como limite o montante de R$ 35.000,00
abaixo do qual as operações estarão isentas da imposição fiscal, para tanto considerando-se
os ativos ou conjunto de ativos da mesma natureza negociados dentro do mesmo
mês [10]. No mais, a propósito deste pontual
aspecto não cremos aplicável o limite menor de R$ 20.000,00 (RIR,
artigo 133, I, a)
porquanto alusivo especificamente às ações negociadas no mercado de balcão,
hipótese que não corresponde às transações com criptomoedas que, como já
mencionado, não são consideradas valores mobiliários tampouco são negociadas no
aludido espaço transacional.
A propósito, merece destaque a atividade de
"mineração" consistente na verificação e validação das
transações com criptomoedas realizadas pelos integrantes da rede (nodes), a partir da qual
são geradas pelo próprio sistema novas criptomoedas que, por tratar-se de
aquisição originária de bem (valor), não ensejará a incidência do imposto de
renda que, entretanto, poderá incidir quando da futura realização (rectius, conversão em
moeda) de tais ativos da qual resulte um efetivo acréscimo patrimonial, por
inteligência do artigo 43, II, e §1º, do CTN [11].
Do mesmo modo poderá haver incidência do imposto de renda sobre os valores
auferidos pelo minerador quando receber por serviços prestados a terceiros para
fins de aceleração do processo, nesta hipótese com base no artigo 43, I, do
CTN, posto tratar-se de uma forma de remuneração por um trabalho realizado.
Paralelamente, poder-se-á cogitar também eventual incidência do ISS caso
referido serviço se enquadre nalguns dos itens da lista anexa à LC nº
116/2003 [12], em que pese a divergência já
existente sobre o tema por conta de uma suposta inexistência de obrigação de
fazer contratada entre partes definidas, sobretudo um tomador de serviços, o que
impediria a qualificação do fato como serviço tributável.
Na condição de bens móveis integrantes
de um dado patrimônio, exsurge a necessidade de que a titularidade ou as
operações com criptoativos sejam informadas à Receita Federal, o que já conta
com expressa previsão na IN/RFB nº 1.888/2019 (DOU 07.05.2019) complementada
por alguns atos declaratórios executivos periodicamente editados pelo mesmo
órgão fazendário [13], destacando-se ainda o
enquadramento fiscal dos criptoativos como "ativos sujeitos a ganho de
capital" que deverão ser declarados pelo valor de aquisição na ficha
de bens e direitos da declaração de ajuste anual do imposto de renda. E a este
respeito, importante ressaltar a problemática em torno do referido "valor
de aquisição" na medida em que as criptomoedas não possuem uma cotação
oficial, não havendo sequer um órgão responsável pelo controle de sua emissão, não
havendo dessarte uma regra expressa ou oficial de conversão dos valores para
fins tributários, daí exsurgindo a imperiosa necessidade de que o adquirente
possua documentação idônea e hábil para comprovar o valor do negócio, vale
dizer, o dinheiro gasto na compra do ativo para cotejo com o valor de venda que
futuramente venha a ocorrer.
Para as corretoras que oferecem serviços de
intermediação das operações com criptoativos (as chamadas exchanges), a prestação
mensal de informações é obrigatória e extensível às pessoas físicas ou
jurídicas que realizem quaisquer operações com tais ativos a título de compra e
venda, permuta, doação, transferência ou retirada, cessão temporária, dação em
pagamento, emissão e outras que impliquem transferência de criptoativos.
Eventual descumprimento dessa obrigação poderá acarretar aplicação de multa
variável nos termos do artigo 10 da IN/RFB nº 1.888/2019, de sua parte
fundada no artigo 16 da Lei nº 9.779/95 [14] c/c
o artigo 57 da MP nº 2.158-35/2001, em conformidade ao princípio da
estrita legalidade em matéria de penalidades tributárias [15].
Em verdade, a questão é bastante extensa,
complexa e admite inúmeros apontamentos que, todavia, não se comportam na
brevidade do presente estudo que, ao revés, procurou apontar apenas alguns dos
principais aspectos tributários envoltos no tema.
Por fim, cumpre ponderar que o cenário
atual de indesejada ausência de regramento específico acerca do tema suscita
mais perguntas que respostas firmes e seguras, tratando-se de assunto que daqui
em diante ensejará cada vez mais questionamentos inclusive no aspecto
tributário, sendo que a esperada aprovação, pela Câmara dos Deputados, do PL nº
3.825 (substitutivo ao PL nº 4.401) já aprovado pelo Senado, tende a gerar
novos debates e novas perspectivas de análise da questão da tributação das
transações com criptoativos, por conta mesmo do conteúdo econômico revelador de
riqueza tributável, o que de sua parte demandará novos estudos acerca desse
tema tão relevante quanto desafiador.
Por Daniel
Zanetti Marques Carneiro é doutor em Direito, pós-graduado em Direito
Tributário e Internacional e procurador de categoria especial da
Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.