Nesta semana, trataremos dos precedentes do
Carf acerca da contribuição previdenciária sobre lucros distribuídos
antecipadamente aos sócios ou acionistas, isto é, a questões tributárias
controversas de contribuição previdenciária relativas aos lucros distribuídos
antes do encerramento do ano-calendário.
Como regra geral, a distribuição de lucros
ou dividendos configura uma forma de remuneração do capital investido, não
tendo ligação com a existência ou não de uma relação de trabalho entre a
sociedade e seu sócio.
Assim, a princípio, não haveria que se
falar em incidência de contribuição previdenciária sobre valores distribuídos
aos sócios a título de lucros.
Vale notar que a contribuição
previdenciária patronal possui previsão legal específica no artigo 22 da Lei n.
8.212/91[2], que estabelece a incidência de contribuição
de 20% sobre o total das remunerações pagas, devidas ou creditadas a qualquer
título, durante o mês, aos segurados empregados e trabalhadores avulsos que lhe
prestem serviços, destinadas a retribuir o trabalho.
Como se observa, é fundamental que haja uma
remuneração paga ou devida destinada a retribuir o trabalho.
Ocorre que a distribuição de lucros nada
tem a ver com a remuneração do trabalho, mas sim com a remuneração do capital
investido.
Todavia, alguns problemas começam a surgir
quando a sociedade não possui saldos de lucros acumulados ou de lucro do
exercício a serem distribuídos aos sócios.
Tal situação pode acontecer na hipótese em
que uma sociedade começa a distribuir lucros do próprio exercício antes do
encerramento deste mesmo exercício, ou seja, há uma distribuição antecipada dos
lucros.
Considerando que a formação do lucro
contábil se dá ao longo de todo ano, sempre haverá o risco de que um lucro
contábil que existia de janeiro até a data de distribuição do lucro não exista
mais naquela mesma quantidade ao final do ano (na pior das hipóteses, a
sociedade pode até apurar um prejuízo contábil).
Eis que surge a situação controversa:
diante da inexistência de lucro contábil igual ou superior ao que foi
efetivamente distribuído de forma antecipada aos sócios, é possível qualificar
os montantes distribuídos como se fossem remuneração paga pelo trabalho,
passíveis de tributação pela contribuição previdenciária patronal.
O Decreto nº 3.048/99, que instituiu o
Regulamento da Previdência Social, estabelece em seu artigo 201, §5º, II[3], que incide a contribuição previdenciária patronal
sobre os valores totais pagos ou creditados aos sócios por sociedade civil de
prestação de serviços profissionais relativos ao exercício de profissões
legalmente regulamentadas, ainda que a título de antecipação de lucro da pessoa
jurídica, quando não houver discriminação entre a remuneração decorrente do
trabalho e a proveniente do capital social ou tratar-se de adiantamento de
resultado ainda não apurado por meio de demonstração de resultado do exercício.
Como se observa, no caso específico de
sociedade civil de prestação de serviços profissionais relativos ao exercício
de profissões legalmente regulamentadas, o dispositivo infralegal acima
mencionado possibilita a requalificação dos lucros distribuídos pela pessoa
jurídica sem amparo contábil como remuneração pelo trabalho sobre a qual
incidirá a contribuição previdenciária.
O referido dispositivo foi praticamente
transcrito no artigo 57, §5º, da Instrução Normativa RFB n. 971/09[4], no entanto, houve a atualização de "sociedade
civil de prestação de serviços profissionais" para "sociedade
simples de prestação de serviços", uma vez que a partir do Código Civil de
2002, foi instituída a sociedade simples, ao passo que foi extinto tipo
societário de sociedade civil.
O artigo 57 da Instrução Normativa RFB
nº 971/09 traz ainda o §6º[5], que estabelece que o
valor a ser distribuído a título de antecipação de lucro poderá ser previamente
apurado mediante a elaboração de balancetes contábeis mensais, devendo, nessa
hipótese, ser observado que, se a demonstração de resultado final do exercício
evidenciar uma apuração de lucro inferior ao montante distribuído, a diferença
será considerada remuneração aos sócios.
Mais uma vez, nota-se que a própria norma
infralegal aponta que na hipótese em que o resultado final do exercício for
inferior ao montante distribuído, a diferença será qualificada como remuneração
aos sócios e sobre ela incidirá contribuição previdenciária patronal.
O entendimento constante tanto no Regulamento
da Previdência Social quanto na Instrução Normativa RFB nº 971/09 já foi
reafirmado pela Administração Tributária por meio das Soluções de Consulta
nº 46/2010 e 76/2010, sendo que a última se referia explicitamente a uma
sociedade empresária.
Feitas as observações gerais sobre o tema,
verificaremos os precedentes do Carf que tratam do assunto.
No Acórdão 2402-003.821 (de 19/11/13)[6], a turma decidiu por unanimidade pelo provimento do
recurso voluntário de sociedade simples de advogados.
No voto, o relator apontou que no caso em
tela havia discriminação entre a remuneração do trabalho e a remuneração do
capital, no entanto, a fiscalização indiciou que haveria uma característica de
remuneração do trabalho nos valores distribuídos, uma vez que eles não
guardavam correspondência com a proporção de quotas de cada sócio.
Assim, o relator manifestou o entendimento
de que esse indício de falta de proporcionalidade é insuficiente para afastar a
autonomia da vontade da sociedade nos limites conferidos pela lei, uma vez que
inexiste "norma proibitiva de uma desproporção eleita pelos sócios entre a
remuneração do trabalho a título de pro-labore e a remuneração do capital a
título de lucros distribuídos".
Diz ainda o relator que o capital investido
em uma sociedade simples costuma ser baixo, de forma que é natural que os lucros
apurados superem mensalmente o valor do capital social, sendo que "não há
nada que desabone seu funcionamento a opção de remunerar sócios a título de
pro-labore com valores reduzidos".
No Acórdão 2302-002.892 (de 21/11/13)[7], a turma decidiu de forma unânime pela manutenção do
auto de infração de contribuição previdenciária lavrado contra uma sociedade
limitada.
No voto, o relator indicou expressamente as
normas infralegais supracitadas, bem como as Soluções de Consulta também
referidas neste artigo. No caso em tela, o contribuinte era optante pelo Lucro
Presumido e não possuía uma contabilidade devidamente escriturada, sendo que
alegou inclusive não ter uma escrituração contábil mais completa em virtude do
seu regime de imposto de renda.
O relator do voto apontou que no caso
concreto há exigência específica da legislação previdenciária impondo que haja
segregação dos valores pagos a título de remuneração do trabalho e de
remuneração do capital, bem como há que se ter apuração do resultado do
exercício para que haja qualificação dos montantes distribuídos como lucro
antecipado.
Nesse sentido, constou no voto que: "a
legislação previdenciária determina não somente a escrituração de livros
fiscais, mas, igualmente, a elaboração de demonstrativos contábeis e balanços
fiscais, documentos estes indispensáveis à apuração do lucro contábil".
No Acórdão 2401-003.436 (de 18/03/14)[8], a turma julgou por unanimidade pela manutenção do auto
de infração lavrado contra uma sociedade limitada.
No caso concreto, não havia qualquer
comprovação na escrituração contábil acerca da existência de lucros, sendo que
havia registro contábil tão somente dos valores pagos a título de pró-labore. A
falta de uma escrituração contábil adequada acabou sendo o principal motivo
para a manutenção do auto de infração.
No Acórdão 2201-004.102 (de 05/02/18)[9], a turma decidiu de forma unânime pela manutenção do
auto de infração, no qual foi lançada contribuição previdenciária sobre o
montante dos lucros distribuídos antecipadamente ao longo do ano aos sócios por
uma sociedade limitada.
No caso em tela, a fiscalização constatou que
a então recorrente não auferiu lucros no exercício em questão e tampouco
possuía saldo de lucros acumulados, de modo que os pagamentos foram
qualificados como pagamentos a título de remuneração dos sócios enquanto
contribuintes individuais que recebiam pró-labore.
No voto, constou expressamente o
entendimento de que haverá a incidência da contribuição previdenciária quando:
(i) não houver discriminação entre a remuneração decorrente do trabalho e a
proveniente do capital social; ou (ii) tratar-se de adiantamento de resultado
ainda não apurado por meio de demonstração do resultado do exercício.
Além disso, constou no voto o entendimento
de que o artigo 201, §5º do Regulamento da Previdência Social se aplica também
às sociedades empresárias, não se limitando às sociedades civis de profissão
regulamentada.
Por fim, a documentação contábil
apresentada nos autos não foi suficiente para demonstrar a existência dos
lucros da sociedade, havendo inclusive mês com prejuízo contábil em que houve
distribuição de lucros.
Nos Acórdãos 2401-007.308 e 2401-007.309
(ambos de 15/01/20)[10], a parte relativa a
requalificação dos lucros distribuídos antecipadamente para remuneração pelo
trabalho foi mantida pelo voto de qualidade em caso envolvendo uma sociedade
limitada.
No voto vencido, o relator expressamente se
manifestou acerca da ilegalidade quanto à requalificação de lucros distribuídos
para pró-labore com a consequente incidência da contribuição previdenciária.
Nessa linha, constou no voto vencido do
conselheiro relator: "em relação às irregularidades dos registros
contábeis e comerciais da empresa, alega que nenhuma delas pode subsistir,
contudo, ainda que se admita a divergência de entendimento, não tem o condão de
transformar lucros em pró-labore". "Aliás, em se tratando de matéria
de conteúdo eminentemente fático, pontua que nenhuma irregularidade formal
teria essa faculdade."
Como se observa, o relator manifestou o
entendimento de que ainda que a escrituração contábil possua irregularidades,
tais falhas não teriam o condão de alterar a natureza jurídica dos pagamentos
para pró-labore.
Por outro lado, no voto vencedor, o relator
designado seguiu a orientação das normas infralegais no sentido de que a
demonstração de lucros insuficientes frente aos montantes distribuídos já
bastaria para a requalificação de tais montantes como pró-labore.
Diante do exposto, a partir da maior parte
dos precedentes analisados, verifica-se que a distribuição de lucros
antecipados ao longo do exercício sem que haja lucro suficiente ao final do
exercício tem como consequência a requalificação do excesso de lucros
distribuídos para remuneração do trabalho passível de tributação pela
contribuição previdenciária patronal.
*Este texto não reflete a posição
institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no
site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos
seus colunistas.
Autor: Alexandre Evaristo Pinto é conselheiro titular
da Câmara Superior de Recursos Fiscais da 1ª Seção do Carf, ex-conselheiro
titular da 2ª Seção do Carf, doutorando em Controladoria e Contabilidade pela
Universidade de São Paulo (USP), doutor em Direito Econômico, Financeiro e
Tributário pela USP, mestre em Direito Comercial pela USP, professor do
Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e presidente da Associação
dos Conselheiros Representantes dos Contribuintes no Carf (Aconcarf).
Fonte:
Revista Consultor Jurídico