"Não produzem efeitos
perante o Fisco as operações realizadas sem propósito negocial, com o único
intuito de reduzir a tributação." "O ordenamento jurídico não valida
a utilização de negócios jurídicos apenas por sua forma, mas pelo
conteúdo." "Não se pode admitir que a prática de operações de
reorganização societária seja aceita, para fins tributários, apenas pelo fato
de apresentar lisura formal, quando analisados os atos individualmente."
As frases acima são bastante
utilizadas nos acórdãos de julgamentos referentes ao tema mais controverso e
que mais ocupa o Carf na última década: o propósito negocial em operações
societárias ou, mais especificamente, o planejamento tributário por meio de
arranjos societários.
A polêmica está longe de ser
nova (tem, quando menos, 87 anos) e muito já se escreveu e debateu sobre ela.
Portanto, não temos a pretensão de oferecer ao leitor nenhuma "revolução
interpretativa" ou "conclusão milagrosa". Nosso intuito aqui é
propor uma breve, porém instigante reflexão: em grande parte das vezes, a
finalidade societária deve ser lida como o próprio propósito negocial de uma
operação, e o caso Estimapar-Forjas Taurus julgado pelo Carf (Acórdão
1201-002.879) demonstra esse panorama com bastante clareza.
Relembrando os fundamentos do planejamento tributário
Em suma, segundo a definição da obra clássica de Marco Aurélio Greco [1], planejamento tributário é
"[...]
adoção, pelo contribuinte, de providências lícitas voltadas à reorganização de
seus negócios com vistas a dar vida à hipótese que não configuraria (aos olhos
do contribuinte) um fato gerador do imposto, ou à sua configuração de um modo
que resulte tributo em dimensão inferior à que existira caso não tivessem sido
adotadas tais providências."
Em outras palavras, o
planejamento tributário, aqui entendido como elisão fiscal, nada mais é do que
a escolha do contribuinte de evitar o fato gerador de uma obrigação tributária,
buscando a incidência mais otimizada possível, diante de uma situação concreta.
Para que fique claro, estamos considerando, evidentemente, apenas aqueles
planejamentos que não apresentam "vícios" ou "patologias",
como fraude ou simulação.
É daí que decorre o tão
famoso e discutido "propósito negocial" (business purpose), teoria que ganhou
notoriedade nos anos 30, quando a Suprema Corte dos Estados Unidos julgou o
caso "Gregory vs. Helvering (293 U.S., 465)" [2], que tratava da conduta da sra. Evelyn Gregory, única detentora
da United Mortgage Company, que detinha todas as ações da Monitor Securities
Corporation.
A contribuinte constituiu a
Averill Corporation sob as leis de Delaware e, três dias depois, fez com que a
United pudesse transferir para a companhia todas as ações que detinha da
Monitor. Passados
três dias, a Averill foi extinta sem que tivesse praticado qualquer negócio, de
forma que as ações da Monitor foram liquidadas e recebidas pela sra. Gregory,
no intuito de reduzir o ganho líquido a ser tributado. A posição do auditor
federal de impostos, Guy Helvering, era a de que a suposta reorganização
societária era infundada e deveria ser desconsiderada, devendo a sra. Gregory
ser tributada conforme a realidade da operação, isto é, uma transferência
direta ao acionista a título de dividendos.
A Suprema Corte manteve a
racional aplicada pelo Tribunal de Apelação, além de acolher a posição do
auditor federal. No fim, prevaleceu a ideia de que "a norma que exclui de
consideração o motivo da elisão fiscal não é pertinente à situação, porque o
negócio, à primeira vista, está fora do propósito claro da lei. Afirmar o
contrário seria exaltar o artifício acima da realidade [...]" [3].
A partir daí, ganharam força
dois postulados: (1) em operações societárias realizadas por um contribuinte, o
resultado economia tributária deve estar amparado por algum propósito negocial
anterior que não a elisão do fato gerador; (2) os arranjos artificiais criados
pelo contribuinte para esconder ou simular a real intenção da elisão fiscal
devem ser desconsiderados pelo Fisco, aplicando-se a primazia da realidade
sobre a forma.
Estes são os pressupostos que
devem, portanto, guiar as discussões sobre o business purpose.
O Caso Estimapar-Forjas Taurus
Em 2011, a Estimapar Investimentos e Participações foi autuada pela RFB por não
ter reconhecido o suposto ganho de capital tributável decorrente de alienações
de participação societária, após reorganização estrutural.
Originalmente, a estrutura
societária das empresas do grupo possuía o seguinte organograma:
A partir de 2011, o grupo
promoveu várias operações de reestruturação [4] que
podem ser delineadas, objetivamente, em cinco momentos:
(1) a Polimetal incorporou as
ações da Taurus, pelo que aumentou seu capital social em R$ 327 milhões. Via de
consequência, a Taurus passou a ser sua subsidiária integral (artigo 251 da Lei
nº 6.404/76).
(2): a Polimetal resgatou uma
parte das ações da Taurus e as retirou de circulação de forma definitiva,
motivo pelo qual recebeu R$ 165 milhões.
Como se sabe, o resgate de
ações é uma operação societária amplamente utilizada, na qual uma companhia
paga a seus acionistas o valor de suas ações, para retirá-las de circulação
definitivamente (artigo 44, §1º, da Lei 6.404/76). Isto ocorre, em regra,
quando interessa à empresa reduzir o número de ações de forma geral ou acabar
com uma classe de ações específica.
(3): a Taurus incorporou as
ações da Polimetal, promovendo um aumento de capital social de R$ 38,7 milhões.
A partir daí, a Polimetal passou a ser subsidiária integral da Taurus.
(4): a Taurus realizou um
desdobramento do número de ações e, posteriormente, um grupamento dessas ações,
com o intuito de ajustar o valor nominal.
(5): A Polimetal foi
transformada em uma sociedade Ltda e, posteriormente, teve seu capital social
integralizado com uma parte dos ativos da Taurus, em uma operação de drop-down). Dessa forma,
a Polimetal passou a desenvolver atividade industrial antes desenvolvida por
uma das filiais da Taurus.
O que apontou o auto de infração
Segundo o auditor da RFB, a Estimapar não detinha participação na Taurus (conta
zerada). Quanto à Polimetal, a conta "1311103 - Polimetal"
apresentava saldo de R$ 798.516,04, equivalente a 61,20% de participação. Além
disso, antes da reestruturação, a empresa teria feito um lançamento a crédito com
esse mesmo valor nessa conta contábil, motivo pelo qual ela restou zerada.
Após a reestruturação, a
Estimapar registrou uma equivalência patrimonial de R$ 25.936.425,94 na conta
"1311103 - Polimetal". Logo, o valor do investimento teria passado de
0 para R$ 25.936.425,94, de modo que a empresa deveria ter reconhecido o ganho
de capital tributável.
Dias depois, a Estimapar
realizou os lançamentos contábeis dos momentos 2 e 3 na conta "131104 -
Forja Taurus", de modo que o saldo de investimento na empresa resultou no
valor de R$ 22.878.084,06. Para a fiscalização, a empresa alienou as ações da
Polimetal e passou a deter ações da Taurus, no valor de R$ 22 milhões e,
portanto, deveria oferecer esses valores à tributação.
Em suma, para que o leitor
não tenha qualquer dúvida: na visão da fiscalização, houve alienação de
participação societária da Estimapar na Polimetal, quando adquiriu a
participação societária na Forjas Taurus. Para o contribuinte, a incorporação
de ações não caracterizou alienação de participação societária, mas apenas o
remanejo de ações (substituição) intragrupo, com a variação no percentual de
participação, o que não é ganho de capital tributável, conforme o artigo 509 do
RIR/2018 [5] (à época da autuação, artigo 428 do RIR/99).
O propósito negocial da operação
Dois pontos principais chamam a atenção no acórdão e no contexto fático do
caso.
O primeiro deles é o fato de
que, conforme a justificativa da Estimapar, o propósito negocial das operações
realizadas estava fundamentado no próprio propósito societário do remanejo de
ações intragrupo: segregação e melhorias operacionais das atividades e a
liquidação do endividamento de curto prazo da Polimetal.
Essas razões estão dispostas
na Comunicação de Fato Relevante ao mercado que a Forjas Taurus protocolou na
CVM em 11 de maio de 2011 (já citada acima), para comunicar que a administração
da companhia submeteria à assembleia geral de acionistas a proposta de
reestruturação societária. No documento, em suma, a operação se baseava nas
seguintes premissas:
(a) segregação específica das
atividades desenvolvidas pelas empresas do grupo;
(b) manutenção e
aproveitamento, após a operacionalização da Polimetal, dos saldos acumulados de
prejuízo fiscal contabilizados na empresa no encerramento do ano de 2010;
(c) liquidar as dívidas
registradas no balanço da Polimetal, no valor aproximado de R$ 165 milhões, à
conta de valores recebidos em decorrência de resgate de ações de emissão da
companhia, sem redução de capital;
(d) a possibilidade de se
utilizar de uma empresa pertencente à estrutura de controle para desenvolver
atividades operacionais, dispensando-se a abertura de capital de outra sociedade.
Todas essas premissas
demonstram que a causa originária das complexas operações de incorporação de
ações, resgate, desdobramento, reagrupamento e drop-down foi, por si só, a própria
reestruturação do grupo e, principalmente, o saneamento do considerável passivo
acumulado pela Polimetal. Tanto é que o resgate de ações gerou para a empresa o
valor necessário para que as dívidas bancárias fossem sanadas imediatamente.
Essa foi, aliás, uma das
razões pela qual a maioria dos conselheiros entendeu não haver ganho de capital
tributável sobre a operação (p. 12):
"Não se pode desprezar o fato de que todas as
empresas envolvidas são relacionadas, pois o contribuinte era controlador da
Polimetal e esta era controladora da Taurus e, ao final, o contribuinte passou
a ser controlador da Taurus e esta passou a ser controladora da Polimetal.
Verifico que as ações da Polimetal, alienadas pelo contribuinte, continuaram no
grupo, agora no domínio da Taurus, e que as ações da Taurus, adquiridas pelo
contribuinte, já pertenciam ao grupo, no
domínio da Polimetal. Em
outras palavras, ao se considerar as operações como um todo, não houve uma
alienação das ações da Polimetal pertencentes ao contribuinte, mas apenas um
remanejamento dentro do grupo" (grifo nosso).
O segundo ponto repousa no
fato de que nem mesmo o auditor fiscal colocou em xeque a licitude e a
substância das operações praticadas pelas empresas do grupo. Ao contrário,
conforme se verifica do voto do relator, conselheiro Neudson Albuquerque (p.
7), a autuação está baseada no ganho patrimonial tributável decorrente da
materialidade dessas operações:
"Verifico que a fiscalização não
desconsiderou os negócios jurídicos praticados entre a Taurus e a Polimetal, nem
quando a Polimetal incorporou a Taurus, nem quando a Taurus incorporou a
Polimetal.
Na verdade, a fiscalização reconheceu todos os atos praticados por essas empresas,
objeto de
investimento do contribuinte, para identificar os efeitos desses atos sobre o
patrimônio do contribuinte [...]" (grifo
nosso).
Como o leitor já percebeu,
embora o acórdão tenha sido favorável ao contribuinte, vários são os
questionamentos relativos ao planejamento tributário que poderiam ser feitos no
decorrer da operação.
E se o auditor fiscal, ao
contrário do que fez, partisse do pressuposto de que a reorganização societária
encampada pelas empresas do grupo tinha, como "objetivo principal
velado", o intuito de aproveitar o prejuízo fiscal acumulado por empresa
não operacional? E se a racional aplicada pela fiscalização fosse a de que a complexidade
das operações realizadas demonstrava, por si só, a utilização de uma estrutura
simulada, de modo que o único intuito da Estimapar era o de escapar da
tributação do ganho de capital sobre a alienação de participação societária?
Ora, não se pode ignorar o
fato de que o contribuinte tinha, realmente, como pressupostos da
reestruturação (1) a não configuração de ganho de capital, por entender que o
remanejo de ações intragrupo não envolve qualquer participação de alienação e
(2) a possibilidade de aproveitamento do prejuízo fiscal acumulado por empresa
não operacional deficitária e que foi incorporada pela sua antiga
incorporadora.
Porém, diante de todos os
pressupostos, é facilmente perceptível que, no presente caso, a finalidade societária era um propósito em si mesmo e
que, consequentemente, desencadeou economia tributária ao contribuinte. Em
outras palavras, seja de forma intencional ou não, o contribuinte se utilizou
de um planejamento tributário, por meio de arranjo societário que tinha a si
próprio como substância e finalidade, sem que se demonstrasse qualquer
patologia ou vício nas operações praticadas.
Nesse sentido é que se tem
por correta a afirmação de Heleno Torres [6] sobre
a causa do negócio jurídico: ou ela existe e, com isso, dá substrato à operação
praticada que evitou o fato gerador, ou ela não existe e, por isso, torna o
negócio jurídico patológico, transformando-o não em uma conduta elisiva, mas
sim elusiva.
Essa é, ao nosso ver, a
racional que deve ser refletida nas autuações fiscais e discussões acerca do
planejamento tributário no Carf. Em muitos dos casos (como no
acórdão 9101-002.429), o Carf simplesmente despreza o propósito societário
plausível almejado pelo contribuinte. Porém, em grande parte das vezes, não se
pode ignorar que essa finalidade societária é o próprio propósito negocial de
uma operação, sendo esta, sem mais ou menos, a própria substância do ato, ainda
que se verifique como resultado a elisão fiscal praticada pelo contribuinte.
Autores:
Urick Soares é tax consultant no
escritório William Freire Advogados Associados e LL.M Tributário pela PUC Minas
e cofundador do Centro de Estudos de Mercado de Capitais e Financeiro (Cemc).
Sara Stéfanas Evangelista é contadora,
advogada em Direito Tributário e membra e pesquisadora do Centro de Estudos de
Mercado de Capitais e Financeiro (Cemc).
Rhanna Araújo é estudante de Direito e
membra e pesquisadora do Centro de Estudos de Mercado de Capitais e Financeiro
(Cemc).
André Brandão André Brandão é
estudante de Direito e membro e pesquisador do Centro de Estudos de Mercado de
Capitais e Financeiro (Cemc).
Fonte: Revista Consultor Jurídico