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Tributação do ICMS nas transferências de bens entre estabelecimentos de mesma titularidade


Publicada em 03/11/2022 às 09:00h 


De início é preciso dizer que essa discussão não é recente, uma vez que a Lei Complementar nº 87/96 determinava a independência dos estabelecimentos, ainda que da mesma empresa, permitindo-se a cobrança de ICMS nas operações de transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular. Nestes termos:

 


Art. 11. O local da operação ou da prestação, para os efeitos da cobrança do imposto e definição do estabelecimento responsável, é:

(...)


§ 3º Para efeito desta Lei Complementar, estabelecimento é o local, privado ou público, edificado ou não, próprio ou de terceiro, onde pessoas físicas ou jurídicas exerçam suas atividades em caráter temporário ou permanente, bem como onde se encontrem armazenadas mercadorias, observado, ainda, o seguinte:

(...)


II - é autônomo cada estabelecimento do mesmo titular;

 


Os Executivos Estaduais, pela mesma via, adotaram em suas legislações a mesma sistemática produzindo um efeito de débito x crédito nessas operações de transferência, com todos os problemas decorrentes (acumulação de crédito em um estado em detrimento de outra UF, hipóteses de isenção, manutenção de crédito, etc).

 


Todavia, a jurisprudência se consolidou com o tempo no sentido da inconstitucionalidade das normas estaduais e da própria LC 87/96, quanto à essa matéria. Os tribunais, na forma do controle difuso, em que cada tribunal decidia especificamente uma causa, sem repercussão ou obrigatoriedade de adoção para as demais, consolidaram a tese da não incidência do ICMS nessas operações de transferência do mesmo titular pela falta da necessária bilateralidade, conforme entendimento sumulado pelo STJ:

 


SÚMULA N. 166 Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte. (DJ 23.08.96, p. 29.382)

 


O próprio STJ já havia conferido anteriormente repercussão geral nessa matéria para uniformização da jurisprudência, o que foi posteriormente referendado pelo STF em 14/08/2020, adotando o mesmo sentido:

 


REPERCUSSÃO GERAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 1.255.885 MATO GROSSO DO SUL RELATOR : MINISTRO PRESIDENTE RECTE.(S) :ANA FUMIE YOKOYAMA E OUTRO ( A / S ) ADV.( A / S ) : DANIEL FRANCO DA COSTA RECDO.( A / S ) : ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL PROC.( A / S)(ES ) : PROCURADOR -GERAL DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL EMENTA Recurso extraordinário com agravo. Direito Tributário. Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Deslocamento de mercadorias. Estabelecimentos de mesma titularidade localizados em unidades federadas distintas. Ausência de transferência de propriedade ou ato mercantil. Circulação jurídica de mercadoria. Existência de matéria constitucional e de repercussão geral. Reafirmação da jurisprudência da Corte sobre o tema. Agravo provido para conhecer em parte do recurso extraordinário e, na parte conhecida, dar-lhe provimento de modo a conceder a segurança. Firmada a seguinte tese de repercussão geral: Não incide ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, visto não haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de mercancia. (grifado)

 


O STF foi novamente chamado à intervenção nessa matéria quando o Governador do Estado do Rio Grande do Norte promoveu a Ação Direta de Constitucionalidade, tombada sob o nº 49 no STF, pretendendo o reconhecimento da constitucionalidade da legislação estadual que previa a incidência do ICMS nas operações de transferência do mesmo titular. Entretanto, em 19/04/2021, o plenário do STF reconheceu unanimemente a inconstitucionalidade das disposições da LC 87/1996, que preveem a cobrança do ICMS nessas operações.

 


Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE. ICMS. DESLOCAMENTO FÍSICO DE BENS DE UM ESTABELECIMENTO PARA OUTRO DE MESMA TITULARIDADE. INEXISTÊNCIA DE FATO GERADOR. PRECEDENTES DA CORTE. NECESSIDADE DE OPERAÇÃO JURÍDICA COM TRAMITAÇÃO DE POSSE E PROPRIDADE DE BENS. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.

 


1. Enquanto o diploma em análise dispõe que incide o ICMS na saída de mercadoria para estabelecimento localizado em outro Estado, pertencente ao mesmo titular, o Judiciário possui entendimento no sentido de não incidência, situação esta que exemplifica, de pronto, evidente insegurança jurídica na seara tributária. Estão cumpridas, portanto, as exigências previstas pela Lei n. 9.868/1999 para processamento e julgamento da presente ADC.

 


2. O deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular não configura fato gerador da incidência de ICMS, ainda que se trate de circulação interestadual. Precedentes.

 


3. A hipótese de incidência do tributo é a operação jurídica praticada por comerciante que acarrete circulação de mercadoria e transmissão de sua titularidade ao consumidor final.

 


4. Ação declaratória julgada improcedente, declarando a inconstitucionalidade dos artigos 11, §3º, II, 12, I, no trecho "ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular", e 13, §4º, da Lei Complementar Federal n. 87, de 13 de setembro de 1996.

 


(grifado)

 


Como se vê, o STF tão-somente reconheceu a jurisprudência que já estava cristalizada, não inovando sob o tema. Contudo os problemas realmente apareceram quando, em sede de embargos de declaração, tanto os Fiscos quanto os contribuintes requereram a modulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade da decisão.

 


Por meio dos embargos de declaração os ministros analisam a modulação dos efeitos da decisão e a regulamentação da transferência de créditos entre as empresas afetadas pela decisão de 2021. Os contribuintes pleitearam a manutenção dos créditos obtidos na compra de mercadorias e a possibilidade de utilizá-los em outros estados.

 


Dois caminhos distintos foram suscitados pelos ministros Edson Fachin, relator, e Dias Toffoli. O relator propôs que os efeitos da decisão tomada na ADC 49 guardem seus efeitos a partir do próximo exercício financeiro, em 2023, ressalvados os processos administrativos e judiciais conclusão ainda não concluídos até a data de publicação da ata de julgamento da decisão de mérito.

 


Em relação à questão da transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos de mesmo titular, o ministro Edson Fachin definiu o prazo até 2023 para que os Estados Federados e o Distrito Federal disciplinem sobre o tema, sob pena do reconhecimento e a possibilidade de transferência dos créditos fiscais pelos contribuintes, ainda que de unidades federadas distintas.

 


Por sua vez, o ministro Dias Toffoli defendeu que os efeitos da decisão na ADC 49 somente se iniciassem após 18 meses da data de publicação da ata de julgamento dos embargos de declaração. Com relação à creditação do ICMS, o ministrou reconheceu à necessidade da edição de uma lei complementar para regulamentação das operações de transferência dos créditos, contudo, sem fixar prazo ao Congresso Nacional para tal mister, aduzindo que a não edição de norma complementar à Constituição por parte do legislativo federal ensejaria um novo pleito de controle constitucional à Suprema Corte.

 


"Caso se efetive a omissão inconstitucional (isto é, aquele prazo decorra sem que seja editada a lei complementar federal), poderão os legitimados se valer dos meios processuais previstos no ordenamento jurídico, como a ação direta de inconstitucionalidade por omissão."

 


Ressalte-se que com relação à transferência dos créditos, tanto um ministro quanto o outro reconhecem a impossibilidade de estorno pelos estados e a necessidade de regulamentação do tema.

 


Eis o último voto no plenário virtual do ICMS, antes do pedido de vista do Ministro Nunes Marques:

 


MODULAÇÃO


Decisão: Após o voto-vista do Ministro Dias Toffoli, que divergia do Ministro Edson Fachin (Relator) para acolher os embargos de declaração e propor, a título de modulação de efeitos, que a decisão de mérito tenha eficácia após o prazo de 18 (dezoito) meses, contados da data de publicação da ata de julgamento dos presentes embargos de declaração, ficando ressalvadas as ações judiciais propostas até a data de publicação da ata de julgamento do mérito caso os sujeitos passivos partes dessas ações optem ou já tenham optado por não destacar e recolher o ICMS nas operações de transferência de mercadorias entre estabelecimentos de mesma titularidade, tal como a sistemática anterior permitia, e fazia esclarecimento pontual do acórdão de mérito para afirmar a declaração de inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, do art. 11, § 3º, II, da Lei Complementar nº 87/1996, excluindo de seu âmbito de incidência apenas a hipótese de cobrança do ICMS sobre as transferências de mercadorias entre estabelecimentos de mesmo titular, no que foi acompanhado pelo Ministro Alexandre de Moraes, em voto ora reajustado, e pelo Ministro Luiz Fux (Presidente); e do voto do Ministro Ricardo Lewandowski, que acompanhava o Relator, pediu vista dos autos o Ministro Nunes Marques. Plenário, Sessão Virtual de 29.4.2022 a 6.5.2022.

 


De resto, é forçoso concluir que nesse processo de modulação, seja garantido o crédito fiscal daqueles que praticavam a relação crédito x débito antes da declaração de inconstitucionalidade da norma, independentemente do termo de início de seus efeitos, sob pena de penalização daqueles que se encontravam em consonância com a norma revogada.

 


O QUE DIZ A LEGISLAÇÃO BAIANA


Com a adoção da Súmula nº 8, o Conselho de Fazenda do Estado da Bahia - CONSEF já havia reconhecido a não incidência do ICMS nas operações de transferência de bens entre estabelecimentos do mesmo titular:

 


SÚMULA DO CONSEF Nº 08 Não cabe a exigência do ICMS nas operações internas de transferência de bens ou mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo titular. 2 Data de Aprovação: Sessão de Julgamento da Câmara Superior do Conselho de Fazenda Estadual de 29/08/2019. Fonte: Jurisprudência Predominante do Conselho da Fazenda do Estado da Bahia. Referência Legislativa: Artigo 155, inciso II, da Constituição Federal, de 1988. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS Acórdãos CJF nos A- 0344-11/17, A-0359-12/17, A-0224-12/17, A-0361-11/17, A-0333-11/17, A-0339-11/17, A0355-11/17, A-0357-12/18, A-0345-11/17, A-0356-12/18.

 


Tal reconhecimento deveu-se a uma série de decisões administrativas de mérito no CONSEF que consolidou essa posição, apesar da Lei do ICMS (Lei Estadual nº 7.014/96) ainda firmar posição em sentido oposto.

 


CONCLUSÃO


Pode-se concluir que não deverá incidir ICMS em qualquer operação de transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular, independentemente de estar localizado em outra Unidade da Federação e do regime tributário do contribuinte e da mercadoria transferida.

 


Por ser uma hipótese de não-incidência, em que inexiste o fato gerador jurídico-tributário, não há que se pretender a possibilidade de exigência de recolhimento de ICMS nas antecipações tributárias, por exemplo, mesmo que se dê direito ao crédito.

 


Não há que se falar em relação crédito x débito quando sequer houve o fato gerador do tributo.

 


Todavia, a situação que se evidencia é a de que, enquanto não houver a modulação dos efeitos da decisão e não for editada nova Lei Complementar para disciplina do tema ou mesmo não houver alteração específica na LC 87/96, assim como na Lei baiana 7014/96, pode o fisco exigir o lançamento do imposto nas saídas por transferências internas ou interestaduais de mercadorias da mesma empresa, situação em que o contribuinte ainda terá que contestar a autuação, reafirmando o seu direito ao crédito nas hipóteses em que o ICMS foi recolhido na forma da legislação revogada.

 


De fato, mesmo sem alteração na lei do ICMS, o Fisco baiano não vem mais autuando as transferências de mercadorias efetuadas entre contribuintes de mesma titularidade dentro do estado, porém, o mesmo não ocorre com as transferências interestaduais, exigindo a devida ponderação do contribuinte se vai ou não tributar sua operação de transferência de mercadoria para estabelecimento da mesma empresa localizada em outra unidade federativa.

 









Autor:
Paulo Sérgio Barbosa Neves é advogado e consultor tributário









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