De início é preciso dizer que essa discussão não é recente, uma vez que
a Lei Complementar nº 87/96 determinava a independência dos estabelecimentos,
ainda que da mesma empresa, permitindo-se a cobrança de ICMS nas operações de
transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular. Nestes
termos:
Art.
11. O local da operação ou da prestação, para os efeitos da cobrança do imposto
e definição do estabelecimento responsável, é:
(...)
§
3º Para efeito desta Lei Complementar, estabelecimento é o local, privado ou
público, edificado ou não, próprio ou de terceiro, onde pessoas físicas ou
jurídicas exerçam suas atividades em caráter temporário ou permanente, bem como
onde se encontrem armazenadas mercadorias, observado, ainda, o seguinte:
(...)
II
- é autônomo cada estabelecimento do mesmo titular;
Os Executivos Estaduais, pela mesma via, adotaram
em suas legislações a mesma sistemática produzindo um efeito de débito x
crédito nessas operações de transferência, com todos os problemas decorrentes
(acumulação de crédito em um estado em detrimento de outra UF, hipóteses de isenção,
manutenção de crédito, etc).
Todavia, a jurisprudência se consolidou com o
tempo no sentido da inconstitucionalidade das normas estaduais e da própria LC
87/96, quanto à essa matéria. Os tribunais, na forma do controle difuso, em que
cada tribunal decidia especificamente uma causa, sem repercussão ou
obrigatoriedade de adoção para as demais, consolidaram a tese da não incidência
do ICMS nessas operações de transferência do mesmo titular pela falta da
necessária bilateralidade, conforme entendimento sumulado pelo STJ:
SÚMULA N. 166 Não constitui fato gerador do ICMS o
simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo
contribuinte. (DJ 23.08.96, p. 29.382)
O próprio STJ já havia conferido anteriormente
repercussão geral nessa matéria para uniformização da jurisprudência, o que foi
posteriormente referendado pelo STF em 14/08/2020, adotando o mesmo sentido:
REPERCUSSÃO GERAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM
AGRAVO 1.255.885 MATO GROSSO DO SUL RELATOR : MINISTRO PRESIDENTE RECTE.(S)
:ANA FUMIE YOKOYAMA E OUTRO ( A / S ) ADV.( A / S ) : DANIEL FRANCO DA COSTA
RECDO.( A / S ) : ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL PROC.( A / S)(ES ) : PROCURADOR
-GERAL DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL EMENTA Recurso extraordinário com
agravo. Direito Tributário. Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços
(ICMS). Deslocamento de mercadorias. Estabelecimentos de mesma titularidade
localizados em unidades federadas distintas. Ausência de transferência de
propriedade ou ato mercantil. Circulação jurídica de mercadoria. Existência de
matéria constitucional e de repercussão geral. Reafirmação da jurisprudência da
Corte sobre o tema. Agravo provido para conhecer em parte do recurso extraordinário
e, na parte conhecida, dar-lhe provimento de modo a conceder a segurança.
Firmada a seguinte tese de repercussão geral: Não incide ICMS no deslocamento
de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em
estados distintos, visto não haver a transferência da titularidade ou a
realização de ato de mercancia. (grifado)
O STF foi novamente chamado à intervenção nessa
matéria quando o Governador do Estado do Rio Grande do Norte promoveu a Ação
Direta de Constitucionalidade, tombada sob o nº 49 no STF, pretendendo o
reconhecimento da constitucionalidade da legislação estadual que previa a
incidência do ICMS nas operações de transferência do mesmo titular. Entretanto,
em 19/04/2021, o plenário do STF reconheceu unanimemente a inconstitucionalidade
das disposições da LC 87/1996, que preveem a cobrança do ICMS nessas operações.
Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. AÇÃO
DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE. ICMS. DESLOCAMENTO FÍSICO DE BENS DE UM
ESTABELECIMENTO PARA OUTRO DE MESMA TITULARIDADE. INEXISTÊNCIA DE FATO GERADOR.
PRECEDENTES DA CORTE. NECESSIDADE DE OPERAÇÃO JURÍDICA COM TRAMITAÇÃO DE POSSE
E PROPRIDADE DE BENS. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.
1. Enquanto o diploma em análise dispõe que incide
o ICMS na saída de mercadoria para estabelecimento localizado em outro Estado,
pertencente ao mesmo titular, o Judiciário possui entendimento no sentido de
não incidência, situação esta que exemplifica, de pronto, evidente insegurança
jurídica na seara tributária. Estão cumpridas, portanto, as exigências
previstas pela Lei n. 9.868/1999 para processamento e julgamento da presente
ADC.
2. O deslocamento de mercadorias entre
estabelecimentos do mesmo titular não configura fato gerador da incidência de
ICMS, ainda que se trate de circulação interestadual. Precedentes.
3. A hipótese de incidência do tributo é a
operação jurídica praticada por comerciante que acarrete circulação de
mercadoria e transmissão de sua titularidade ao consumidor final.
4. Ação declaratória julgada improcedente,
declarando a inconstitucionalidade dos artigos 11, §3º, II, 12, I, no trecho
"ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular", e 13, §4º, da Lei
Complementar Federal n. 87, de 13 de setembro de 1996.
(grifado)
Como se vê, o STF tão-somente reconheceu a
jurisprudência que já estava cristalizada, não inovando sob o tema. Contudo os
problemas realmente apareceram quando, em sede de embargos de declaração, tanto
os Fiscos quanto os contribuintes requereram a modulação de efeitos da
declaração de inconstitucionalidade da decisão.
Por meio dos embargos de declaração os ministros
analisam a modulação dos efeitos da decisão e a regulamentação da transferência
de créditos entre as empresas afetadas pela decisão de 2021. Os contribuintes
pleitearam a manutenção dos créditos obtidos na compra de mercadorias e a
possibilidade de utilizá-los em outros estados.
Dois caminhos distintos foram suscitados pelos
ministros Edson Fachin, relator, e Dias Toffoli. O relator propôs que os
efeitos da decisão tomada na ADC 49 guardem seus efeitos a partir do próximo
exercício financeiro, em 2023, ressalvados os processos administrativos e
judiciais conclusão ainda não concluídos até a data de publicação da ata de
julgamento da decisão de mérito.
Em relação à questão da transferência de créditos
de ICMS entre estabelecimentos de mesmo titular, o ministro Edson Fachin
definiu o prazo até 2023 para que os Estados Federados e o Distrito Federal
disciplinem sobre o tema, sob pena do reconhecimento e a possibilidade de
transferência dos créditos fiscais pelos contribuintes, ainda que de unidades
federadas distintas.
Por sua vez, o ministro Dias Toffoli defendeu que
os efeitos da decisão na ADC 49 somente se iniciassem após 18 meses da data de
publicação da ata de julgamento dos embargos de declaração. Com relação à
creditação do ICMS, o ministrou reconheceu à necessidade da edição de uma lei
complementar para regulamentação das operações de transferência dos créditos,
contudo, sem fixar prazo ao Congresso Nacional para tal mister, aduzindo que a
não edição de norma complementar à Constituição por parte do legislativo
federal ensejaria um novo pleito de controle constitucional à Suprema Corte.
"Caso se efetive a omissão inconstitucional (isto
é, aquele prazo decorra sem que seja editada a lei complementar federal),
poderão os legitimados se valer dos meios processuais previstos no ordenamento
jurídico, como a ação direta de inconstitucionalidade por omissão."
Ressalte-se que com relação à transferência dos
créditos, tanto um ministro quanto o outro reconhecem a impossibilidade de
estorno pelos estados e a necessidade de regulamentação do tema.
Eis o último voto no plenário virtual do ICMS,
antes do pedido de vista do Ministro Nunes Marques:
MODULAÇÃO
Decisão: Após o voto-vista do Ministro Dias
Toffoli, que divergia do Ministro Edson Fachin (Relator) para acolher os
embargos de declaração e propor, a título de modulação de efeitos, que a
decisão de mérito tenha eficácia após o prazo de 18 (dezoito) meses, contados
da data de publicação da ata de julgamento dos presentes embargos de
declaração, ficando ressalvadas as ações judiciais propostas até a data de
publicação da ata de julgamento do mérito caso os sujeitos passivos partes
dessas ações optem ou já tenham optado por não destacar e recolher o ICMS nas
operações de transferência de mercadorias entre estabelecimentos de mesma
titularidade, tal como a sistemática anterior permitia, e fazia esclarecimento
pontual do acórdão de mérito para afirmar a declaração de inconstitucionalidade
parcial, sem redução de texto, do art. 11, § 3º, II, da Lei Complementar nº
87/1996, excluindo de seu âmbito de incidência apenas a hipótese de cobrança do
ICMS sobre as transferências de mercadorias entre estabelecimentos de mesmo
titular, no que foi acompanhado pelo Ministro Alexandre de Moraes, em voto ora
reajustado, e pelo Ministro Luiz Fux (Presidente); e do voto do Ministro
Ricardo Lewandowski, que acompanhava o Relator, pediu vista dos autos o
Ministro Nunes Marques. Plenário, Sessão Virtual de 29.4.2022 a 6.5.2022.
De resto, é forçoso concluir que nesse processo de
modulação, seja garantido o crédito fiscal daqueles que praticavam a relação
crédito x débito antes da declaração de inconstitucionalidade da norma,
independentemente do termo de início de seus efeitos, sob pena de penalização
daqueles que se encontravam em consonância com a norma revogada.
O QUE DIZ A LEGISLAÇÃO BAIANA
Com a adoção da Súmula nº 8, o Conselho de Fazenda
do Estado da Bahia - CONSEF já havia reconhecido a não incidência do ICMS nas
operações de transferência de bens entre estabelecimentos do mesmo titular:
SÚMULA DO CONSEF Nº 08 Não cabe a exigência do
ICMS nas operações internas de transferência de bens ou mercadorias entre
estabelecimentos de um mesmo titular. 2 Data de Aprovação: Sessão de Julgamento
da Câmara Superior do Conselho de Fazenda Estadual de 29/08/2019. Fonte:
Jurisprudência Predominante do Conselho da Fazenda do Estado da Bahia.
Referência Legislativa: Artigo 155, inciso II, da Constituição Federal, de
1988. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS Acórdãos CJF nos A- 0344-11/17,
A-0359-12/17, A-0224-12/17, A-0361-11/17, A-0333-11/17, A-0339-11/17,
A0355-11/17, A-0357-12/18, A-0345-11/17, A-0356-12/18.
Tal reconhecimento deveu-se a uma série de
decisões administrativas de mérito no CONSEF que consolidou essa posição,
apesar da Lei do ICMS (Lei Estadual nº 7.014/96) ainda firmar posição em
sentido oposto.
CONCLUSÃO
Pode-se concluir que não deverá incidir ICMS em
qualquer operação de transferência de mercadorias entre estabelecimentos do
mesmo titular, independentemente de estar localizado em outra Unidade da
Federação e do regime tributário do contribuinte e da mercadoria transferida.
Por ser uma hipótese de não-incidência, em que
inexiste o fato gerador jurídico-tributário, não há que se pretender a
possibilidade de exigência de recolhimento de ICMS nas antecipações
tributárias, por exemplo, mesmo que se dê direito ao crédito.
Não há que se falar em relação crédito x débito
quando sequer houve o fato gerador do tributo.
Todavia, a situação que se evidencia é a de que,
enquanto não houver a modulação dos efeitos da decisão e não for editada nova
Lei Complementar para disciplina do tema ou mesmo não houver alteração
específica na LC 87/96, assim como na Lei baiana 7014/96, pode o fisco exigir o
lançamento do imposto nas saídas por transferências internas ou interestaduais
de mercadorias da mesma empresa, situação em que o contribuinte ainda terá que
contestar a autuação, reafirmando o seu direito ao crédito nas hipóteses em que
o ICMS foi recolhido na forma da legislação revogada.
De fato, mesmo sem alteração na lei do ICMS, o
Fisco baiano não vem mais autuando as transferências de mercadorias efetuadas
entre contribuintes de mesma titularidade dentro do estado, porém, o mesmo não
ocorre com as transferências interestaduais, exigindo a devida ponderação do contribuinte
se vai ou não tributar sua operação de transferência de mercadoria para
estabelecimento da mesma empresa localizada em outra unidade federativa.
Autor: Paulo Sérgio
Barbosa Neves é advogado e consultor tributário