É bastante comum que os pais, na formação
do caráter de seus filhos, busquem educá-los sob um manto de honestidade e de
integridade, incentivando-os a sempre dizer a verdade e a assumir as
consequências frente às traquinices. Por isso, certo ou errado, não é incomum
que os pais "perdoem" os filhos e os dispensem do castigo diante da
"confissão" do ocorrido, especialmente se o objeto quebrado não for
assim tão estimado.
A Bíblia, por sua vez, em diversas
passagens, faz uma clara associação entre a confissão e o perdão. Mas aqui
temos um ingrediente a mais: o arrependimento. Arrependidos, confessamos nossos
pecados e alcançamos o perdão de Deus.
Bem distante dessas questões morais, o
Direito, por razões absolutamente práticas e pragmáticas, também costuma
associar o "perdão" à "confissão", a exemplo do que vemos
no instituto da denúncia espontânea, presente tanto no Direito Tributário
quanto no Direito Aduaneiro, este último objeto maior de nossa atenção no
presente texto.
O instituto da denúncia espontânea, já de
longa data, encontra-se consagrado no artigo 138 do Código Tributário Nacional
(CTN) e traz embutida a ideia de que aquele que descumprir uma obrigação pode
ter sua responsabilidade (pela infração) excluída caso vá até o Fisco,
espontaneamente, "regularizar" sua situação. Na prática estamos
falando da não aplicação de sanção contra uma pessoa que efetivamente incorreu
em uma infração.
Contudo, por que o Fisco deixaria de aplicar
uma multa contra uma pessoa que admite ter cometido uma infração? A resposta a
essa questão não passa necessariamente pelo caráter magnânimo dessa entidade
conhecida como "Fisco". As razões do legislador trazem em si uma
praticidade e um pragmatismo evidentes: arrecadar mais com um menor esforço.
Não tendo o Fisco condições e nem estrutura
para fiscalizar a tudo e a todos, e considerando que a infração tributária,
geralmente está relacionada com a falta de recolhimento de tributos, o
legislador ponderou as opções e resolveu estabelecer um "prêmio" para
aqueles que autodenunciarem a infração cometida e, ao mesmo tempo, repararem os
danos causados (pagando os tributos devidos). Nesse sentido, as explicações de
Rosenice Deslandes [1] de que o instituto da
Denúncia Espontânea "é
medida tendente a conciliar certa comodidade para o Fisco e o incremento da
arrecadação" e que "o produto financeiro das sanções, dispensado pelo
Fisco, é recuperado através da economia deste que poupará diligência, empenho e
vigilância".
Esse é o fio condutor que está por trás do
instituto da denúncia espontânea, mas, para que o resultado que se deseja (a
exclusão da responsabilidade pela infração e o consequente afastamento da
sanção) possa ser obtido, é preciso que se observem os requisitos e condições
que permeiam esse instituto, conforme preceitua o próprio artigo 138 do CTN.
Em primeiro lugar, é evidente que o tipo
legal exige um ato voluntário do interessado, que deve "confessar"
para o Fisco a infração cometida. O próprio nome do instituto diz isso:
denúncia espontânea.
Em segundo lugar, é preciso observar que
essa "confissão" deve levar para o Fisco algo que não seja do seu
conhecimento (ou, pelo menos, que o Fisco não tenha ainda manifestamente
sabido) ou cujo conhecimento não esteja em vias de ser revelado para ele. Essa é
a motivação que está imbricada no parágrafo único do artigo 138 do CTN, segundo
o qual "não se considera espontânea a denúncia apresentada após o início
de qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização, relacionados
com a infração".
Por fim, é pressuposto para a aplicação
desse instituto que a obrigação inadimplida seja cumprida e que os danos
provenientes da infração cometida sejam reparados. É isso que se extrai do
caput do artigo 138 do CTN, o qual determina que a denúncia espontânea da
infração deve estar acompanhada, se for o caso, do pagamento do tributo devido
e dos juros de mora. Assim, fica claro que se o descumprimento concerne à
obrigação principal, a responsabilidade será excluída quando e se o infrator
voluntariamente reparar o dano por meio do pagamento do tributo.
Daí tiramos os três requisitos/condições
para a aplicação do instituto da denúncia espontânea: voluntariedade, antecipação ao Fisco e cumprimento da obrigação com
reparação do dano.
Visto dessa forma, chama atenção a
proximidade que esse instituto alcança com o conceito de "arrependimento
posterior", constante no artigo 16 do Código Penal, que prevê a redução de
um a dois terços da pena nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à
pessoa em que o agente, por ato voluntário e antes do recebimento da denúncia
ou da queixa, repara o dano ou restitui a coisa. A diferença é que a denúncia
espontânea afasta por completo a sanção [2].
Uma última questão relativa ao instituto da
denúncia espontânea aplicada no Direito Tributário diz respeito ao alcance do
instituto. Seria aplicado apenas em relação ao descumprimento das obrigações
principais ou alcançaria também o descumprimento das obrigações acessórias?
A doutrina vê na expressão "se for o
caso", utilizada no caput do artigo 138 do CTN, uma clara referência às
obrigações acessórias, uma vez que o descumprimento da obrigação principal
estaria sempre associado à falta de pagamento de tributo. Mas isso pode ser
questionado. Podemos imaginar situações em que se poderia cogitar a utilização
do instituto da denúncia espontânea não para o pagamento de um tributo devido,
mas sim para a redução do tributo a ser restituído, como é o caso, por exemplo,
de uma retificação da declaração anual do imposto de renda da pessoa física.
Não obstante, não deixamos de reconhecer a
força do argumento, principalmente porque o senso comum, que, inclusive, pode
ter motivado o legislador, nos impele a associar o descumprimento da obrigação
principal com a falta de pagamento de tributo.
Mas há outras razões que nos convencem que
o instituto da denúncia espontânea, desde a sua criação, estava direcionado,
também, para o descumprimento de obrigações acessórias. Primeiro, porque não há
nada na legislação que diga o contrário. Segundo, e mais importante, porque o
anteprojeto do CTN trazia, no artigo 289, a expressa vedação de aplicação do
instituto às obrigações tributárias acessórias, o que foi retirado do texto
final [3].
O instituto da denúncia espontânea aplicado
no Direito Aduaneiro, apesar de ser um reflexo daquele aplicado no Direito
Tributário, possui disciplina própria no Decreto-Lei nº 37, de 1966, mais
especificamente em seu art. 102.
O curioso é que, em sua redação original,
esse artigo 102 tratava apenas da denúncia espontânea relativa à pena de
perdimento, hipótese esta que está expressamente excepcionada pela redação
vigente.
Mas os elementos da voluntariedade, da
antecipação ao Fisco e, de certa forma, da reparação do dano (melhor seria
falar em prevenção do dano), já estavam lá. Observe-se que o artigo 102 falava
em "declaração
voluntária feita pelo infrator a autoridade aduaneira, capaz de evitar a
efetivação de ato punível com a pena de perdimento, (...), desde que a
declaração anteceda ao comprovado conhecimento do ilícito, pela fiscalização,
ou a atos de busca, exame ou conferência aduaneira".
O Decreto-Lei nº 2.472, de 1988, por sua
vez, alterou a redação desse artigo 102 e trouxe para o Direito Aduaneiro um
regramento muito parecido, para não dizer idêntico, àquele previsto no artigo
138 de CTN, fazendo constar, em seu § 2º, que a denúncia espontânea se
aplicaria apenas e tão somente às penalidades de natureza tributária.
Mas não foi exatamente isso que o
legislador quis fazer. A intenção não era disciplinar a aplicação do instituto
da denúncia espontânea apenas em relação às penalidades de natureza tributária,
mas sim em relação às penalidades pecuniárias,
excluindo desse universo a penalidade do perdimento. Isso fica muito claro na
leitura da Exposição de Motivos nº 296, de 1º de setembro de 1988, que
esclarece ao final da alínea "i" do item 5, que "nos casos em que se prevê a
aplicação da pena de perdimento, não há que se cogitar de denúncia espontânea,
visto que esta só beneficia o infrator passível de pena pecuniária".
Essa redação utilizada pelo legislador
gerava dúvidas e divergências na aplicação do instituto. Ao mesmo tempo em que
o Fisco não aplicava a denúncia espontânea para qualquer hipótese de pena de
perdimento, inclusive para aquela decorrente da falta de pagamento de tributos
(com dolo), também não a aplicava quando a penalidade era claramente de cunho
aduaneiro, com é o caso da multa de 1% pelo erro de classificação, pelo erro na
quantificação na unidade de medida estatística ou pela omissão ou prestação
inexata ou incompleta de "informação
de natureza administrativo-tributária, cambial ou comercial necessária à
determinação do procedimento de controle aduaneiro apropriado".
Na expectativa de tornar mais clara a
aplicação do instituto da Denúncia Espontânea para todas as penalidades
pecuniárias, inclusive para aquelas aplicáveis pelo descumprimento de
obrigações acessórias (especialmente a multa de 1%), o legislador atendeu a um pedido
das empresas habilitadas ao programa de Despacho Aduaneiro Expresso - Linha
Azul e ao regime aduaneiro especial de Entreposto Industrial sob Controle
Informatizado - Recof e promoveu, por meio da Lei nº 12.350, de 2010, uma
alteração no § 2º do artigo 102 do Decreto-Lei nº 37, e 1966, que passou a
determinar que a "denúncia espontânea exclui a aplicação de penalidades de
natureza tributária ou administrativa, com exceção das penalidades aplicáveis
na hipótese de mercadoria sujeita a pena de perdimento".
Mas essa nova redação, especialmente a
utilização do termo "penalidades de natureza administrativa", acabou
gerando outras dúvidas:
1. Como não há uma exclusão expressa,
poderia a denúncia espontânea ser aplicada para as sanções administrativas de
advertência, suspensão e cancelamento/cassação?
2. Poderia a denúncia espontânea ser
aplicada para qualquer infração administrativa que não resulte na pena de
perdimento, especialmente aquelas relacionadas com o descumprimento de prazo e
com a falta de entrega de documentos?
O Regulamento Aduaneiro, cumprindo seu
papel de regulamentar e interpretar a lei, afastou o primeiro questionamento
com a alteração do § 2º do artigo 683, o qual expressamente delimitou a
aplicação do instituto da Denúncia Espontânea às penalidades pecuniárias, ao
prever que a denúncia espontânea "exclui
a aplicação de multas de natureza tributária ou administrativa...".
Quanto ao segundo questionamento, a
polêmica persiste até hoje, embora mitigada, ao menos na esfera administrativa,
pela edição da Súmula Carf nº 126, que não admite a aplicação do instituto da
denúncia espontânea em relação à penalidade prevista pela não prestação de
informações aduaneiras, na forma e no prazo previstos pela Receita Federal.
De nossa parte, não vemos essa questão como
tão polêmica assim. Os requisitos ou condições para a aplicação do instituto da
Denúncia Espontânea estão muito bem postos e definidos, seja no âmbito do
Direito Tributário, seja no âmbito do Direito Aduaneiro, sendo inafastável a
necessidade de que haja a voluntariedade, a antecipação ao Fisco e,
especialmente, o cumprimento da obrigação com a reparação do dano.
Sobre a voluntariedade e a antecipação ao
Fisco, não parecer haver discussão. O foco, nos parece, está no terceiro
fundamento, que muitos parecem ignorar.
Quando estamos diante de uma determinação
legal para a prestação de informação, na qual, o prazo é um aspecto fundamental
para a determinação do procedimento de controle aduaneiro apropriado, e, por
isso mesmo, faz parte da própria obrigação, a intempestividade priva, ou, ao
menos, dificulta a ação do Fisco no momento em que deveria agir, de tal forma
que a prestação da informação a destempo não permite o refazimento do controle
aduaneiro. Neste caso, portanto, não é reparado o dano (ao controle aduaneiro)
causado.
Por outro lado, seria um contrassenso
permitir, nos casos em que a lei estabelece a obrigação a ser cumprida a
determinado tempo e penaliza o infrator justamente pelo descumprimento desse
prazo, que o instituto da denúncia espontânea viesse e anulasse esses efeitos.
Seria como assumir que o prazo não é importante e o seu cumprimento é
despiciendo.
Assim, voltamos a reforçar a importância de
que se verifiquem os requisitos/condições do instituto da denúncia espontânea,
o qual não pode ser aplicado caso não parta de um movimento voluntário do
interessado, iniciado antes de qualquer ação do Fisco, e, principalmente, se
esse movimento não estiver acompanhado do cumprimento da obrigação inadimplida
ou não for capaz de reparar o dano causado pelo cometimento da infração
denunciada [4]
Por fim, cabe anotar que esse artigo é
fruto de um diálogo de longa data entre os autores. Fica, como sugestão de
aprofundamento, a indicação de artigo dos autores: Denúncia Espontânea em Matéria
Aduaneira [5], de Liziane Meira, e Arrependimento e Reparação de Dano -
Uma Abordagem da Denúncia Espontânea no Direito Aduaneiro, de
Arnaldo Dornelles [6].
Autores:
Arnaldo Diefenthaeler Dornelles é
auditor-fiscal da Receita Federal do Brasil (em mandato de conselheiro
titular), representante da Fazenda Nacional na 1ª Turma Ordinária da 4ª Câmara
da 3ª Seção de Julgamento do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais,
graduado em Direito e em Engenharia Elétrica pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, especialista em Direito Tributário pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul e em mercado de capitais pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul.
Liziane Angelotti Meira é presidente da 3ª Seção do Carf, auditora fiscal
da Receita Federal, professora, pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa
de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG, membro da Academia
Internacional de Direito Aduaneiro, doutora em Direito Tributário pela PUC-SP,
mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade
Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.
Fonte:
Revista Consultor Jurídico