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Do fenômeno da desconsideração da PJ e a proteção do sócio de boa-fé


Publicada em 05/07/2023 às 09:00h 

Abordar a questão sobre quais integrantes de uma organização empresarial podem ser impactados pela utilização do instrumento de desconsideração da personalidade jurídica quando se trata de responsabilização, torna-se uma tarefa de intricada complexidade. Tal mister requer a leitura e a aplicação de vários princípios jurídicos, frequentemente entrelaçados de maneira multifacetada.


Um elemento primordial para a compreensão deste assunto reside no conceito de "abuso da personalidade jurídica", tal qual referido no espectro do Código Civil. Este conceito abrange a exploração inadequada da estrutura corporativa com a finalidade de obter vantagens ilícitas ou causar prejuízos a terceiros. Práticas comuns englobam fraudes, desvio de finalidade, confusão patrimonial e situações em que a empresa serve como um manto para ocultar ou facilitar ações ilegais [1].


Destarte, nos contextos em que se aplica normativas de atribuição de deveres ou responsabilidades aos sócios e gestores, ocorre uma "relação jurídica material do sócio com o credor". Quanto à desconsideração para fins de responsabilização, há necessidade de inadimplemento de uma obrigação da sociedade e a fundamentação para responsabilizar o sócio é "a relação jurídica do sócio com a sociedade devedora" (CHAMBERLAIN, 2021) [2].


No âmbito do direito privado, existem duas variantes principais de desconsideração, fundamentadas nos critérios para sua aplicação: a Teoria Maior e a Teoria Menor. O artigo 50 do Código Civil estabelece o abuso da figura jurídica como requisito para a desconsideração (Teoria Maior). Já o artigo 28, caput, do Código de Defesa do Consumidor [3] lista diversas condições, que não se confundem com abuso da personalidade jurídica, como pressupostos suficientes para a desconsideração, como, por exemplo, a prática de atos ultra vires [4]. Além disso, a interpretação jurisprudencial do parágrafo 5º [5] tem indicado a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica para responsabilização dos sócios, sem a necessidade de demonstração de abuso da personalidade jurídica; basta a insolvência da sociedade (Teoria Menor).


Desse modo, uma vez deslindados o conceito do instituto da desconsideração da personalidade jurídica e suas modalidades, centraremos a análise no cerne deste artigo, que é a existência do "sócio de boa-fé" nesse fenômeno.


Outrossim, o artigo 50 do Código Civil postula que a desconsideração da personalidade jurídica deve ser implementada de maneira excepcional, visando a proteção dos direitos de terceiros prejudicados por tais abusos [6], conforme discorre Liebman, ao afirmar que a fraude à execução busca repelir o "intuito de prejudicar credores" (LIEBMAN, 2001, p. 134) [7].


Portanto, sob uma análise macroscópica, os sócios que não participaram ou não se beneficiaram do abuso da personalidade jurídica não deveriam ser impactados pela desconsideração.


Todavia, a definição de responsabilidade não se revela tão clara na prática jurídica. Não existe consenso doutrinário ou jurisprudencial acerca dos critérios exatos que devem ser utilizados para determinar quais sócios podem ser responsabilizados. Tal decisão ficará a cargo do julgador, que, com base nos elementos factuais de cada caso e em princípios jurídicos como o da proporcionalidade, equidade, boa-fé, entre outros, definirá a responsabilidade.


Porém, é crucial salientar que, com a promulgação da Lei da Liberdade Econômica [8], foram estipulados alguns critérios para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, como a demonstração de desvio de finalidade e confusão patrimonial [9]. Tais medidas tendem a resguardar os sócios que, agindo de boa-fé, não participaram do abuso.


Na desconsideração para fins de responsabilização, a boa-fé será o critério norteador para identificar o abuso da personalidade (requisito para configuração da fraude) e, após o reconhecimento da conduta fraudulenta por meio da personalidade jurídica, servirá como referência para determinar os sócios sujeitos à proteção judicial (efeitos subjetivos da desconsideração).


De maneira sucinta, em alguns casos de abuso da personalidade jurídica, será possível identificar a figura do sócio de boa-fé. Assim como o adquirente de boa-fé [10], o sócio não terá seu patrimônio impactado pelas atividades executivas, mesmo que o órgão judicial reconheça a ocorrência da fraude patrimonial no caso específico. Há situações, por exemplo, em que não se espera a mesma conduta de todos os sócios, pois existe o sócio minoritário - aquele desprovido do poder de controle - que não participa da administração, não tem poder de influência e que não se beneficiou diretamente e nem tem ciência da natureza fraudulenta da atividade ou atos societários. Entretanto, pode também ocorrer a situação contrária - o sócio que, independente do poder de controle e de ser minoritário ou majoritário, tem conhecimento e/ou participa da atividade fraudulenta ou se beneficia diretamente dela - não haverá dúvida quanto a sua sujeição à desconsideração da personalidade jurídica.


Se a desconsideração é um fenômeno extremamente amplo, o critério para identificar seus limites subjetivos não poderia ser outro senão o princípio da boa-fé objetiva, uma ferramenta suficiente para orientar a justiça nos problemas jurídicos mais complexos e variados. De fato, a utilização da boa-fé - conceito jurídico aberto e indeterminado - permite ao juiz, diante da pluralidade de hipóteses e circunstâncias da fraude perpetrada por meio da personalidade jurídica, buscar a justiça do caso concreto (JUNIOR, 2011, p.49) [11].


Portanto, percebemos que o princípio da boa-fé objetiva é a pedra de toque do problema discutido, servindo como base para o desenvolvimento da própria teoria da fraude (LIMA, 1965, p.10-11) [12] e da teoria da desconsideração da personalidade jurídica (CORDEIRO, 2000, p. 152-154) [13].


Contudo, é importante frisar que a desconsideração da personalidade jurídica não tem como objetivo punir quem pratica esses atos de abuso da personalidade jurídica. Inclusive, quando esses atos abusivos não causam prejuízos a terceiros, eles são irrelevantes. É possível que uma pessoa jurídica exista durante toda a sua vida praticando atos de confusão patrimonial, mas se não houver prejuízo aos credores, não há razão para que seja instaurado o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (CASTRO, 2019, p. 96) [14].


Dessa forma, apesar da inexistência de uma regra definitiva, a tendência é que a desconsideração da personalidade jurídica seja aplicada de maneira restrita, afetando apenas os sócios que efetivamente participaram ou se beneficiaram do abuso da personalidade jurídica, protegendo aqueles que, comprovadamente, agiram de boa-fé.


Referências


CHAMBERLAIN, Hector Cavalcanti. O incidente processual de desconsideração da personalidade jurídica: atualização da disregard doctrine na perspectiva da responsabilidade patrimonial e reflexos no processo civil brasileiro. Londrina, PR: Thoth, 2021. Edição do Kindle, posição 1159.


LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo de execução. Araras: Bestbook, 2001. p. 134


CORDEIRO, António Menezes. Da boa fé no direito civil. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2017. p. 503.


AMADEO, Rodolfo da Costa Manso Real. A relevância do elemento subjetivo na fraude de execução. 2010. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. p. 139-140


VILLELA, João Baptista. Apontamentos sobre a cláusula "... ou devia saber". Revista Brasileira de Estudos Políticos, v. 97, p. 182, jan./jun. 2008.


RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Estatuto epistemológico do Direito Civil contemporâneo na tradição de civil law em face do neoconstitucionalismo e dos princípios. O Direito, Lisboa, v. 143, p. 49, 2011.


LIMA, Alvino. A fraude no direito civil. São Paulo: Saraiva, 1965. p. 10-11.


CORDEIRO, António Menezes. O levantamento da personalidade coletiva no direito civil e comercial. Coimbra: Almedina, 2000. p. 152-154.


CASTRO, Roberta Dias Tarpinian de. O incidente de desconsideração da personalidade juri?dica: as diferentes funções de um mesmo mecanismo processual. Sa~o Paulo: Quartier Latin, 2019. p. 96.


[1] Enquanto os pressupostos de aplicação da fraude contra credores estão dispostos nos artigos 158, 159, 162 e 164 do CC, os da fraude de execução estão no artigo 792 do CPC e, por fim, da desconsideração da personalidade jurídica foram previstos no artigo 50 do CC.


[2] CHAMBERLAIN, Hector Cavalcanti. O incidente processual de desconsideração da personalidade jurídica: atualização da disregard doctrine na perspectiva da responsabilidade patrimonial e reflexos no processo civil brasileiro. Londrina, PR: Thoth, 2021. Edição do Kindle, posição 1159.


[3] Artigo 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.


[4] Conforme preceitua o Código Civil, atos ultra vires culminam na responsabilização (civil) dos administradores e, em virtude da revogação do artigo 1.015, parágrafo único, CC, vinculam a pessoa jurídica, porém, não comprometem os sócios, dado que não se enquadra em um cenário de desconsideração da personalidade jurídica. Diferentemente, no Código de Defesa do Consumidor, visto que se caracteriza como hipótese de desconsideração, a priori, os sócios poderiam ser afetados.


[5] §5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.


[6] O artigo 50, parágrafo 1º do Código Civil Brasileiro, definindo o desvio de finalidade como um utilização da pessoa jurídico com o propósito de lesar credores.


[7] LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo de execução. Araras: Bestbook, 2001. p. 134


[8] Lei nº 13.874, promulgada em 20 de setembro de 2019.


[9] Antes da Lei da Liberdade Econômica, a desconsideração da personalidade jurídica poderia ser aplicada de maneira mais ampla. Com a nova lei, houve uma alteração no Código Civil para restringir essa possibilidade, tornando-a mais precisa e limitada.


[10] O adquirente será de má-fé quando conhece do prejuízo ou quando sua ignorância resulta de sua negligência (CORDEIRO, António Menezes. Da boa fé no direito civil. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2017. p. 503.) ("deveria saber"). No entanto, apenas o "não saber" não configura a boa-fé, visto ser necessária uma ignorância diligente (AMADEO, Rodolfo da Costa Manso Real. A relevância do elemento subjetivo na fraude de execução. 2010. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. p. 139-140). Vale destacar que o saber e o não saber culposo recebem tratamento jurídico único (VILLELA, João Baptista. Apontamentos sobre a cláusula "... ou devia saber". Revista Brasileira de Estudos Políticos, v. 97, p. 182, jan./jun. 2008.).


[11] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Estatuto epistemológico do Direito Civil contemporâneo na tradição de civil law em face do neoconstitucionalismo e dos princípios. O Direito, Lisboa, v. 143, p. 49, 2011.


[12] LIMA, Alvino. A fraude no direito civil. São Paulo: Saraiva, 1965. p. 10-11.


[13] CORDEIRO, António Menezes. O levantamento da personalidade colectiva no direito civil e comercial. Coimbra: Almedina, 2000. p. 152-154.


[14] CASTRO, Roberta Dias Tarpinian de. O incidente de desconsiderac
?a~o da personalidade juri?dica: as diferentes func?o~es de um mesmo mecanismo processual. Sa~o Paulo: Quartier Latin, 2019. p. 96.


Autor: Italo Matheus Azevedo Lima. Advogado e mestrando em Direito pela Universidade Europea del Atlântico na Espanha.







Fonte: Revista Consultor Jurídico





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