"É lícita a terceirização por 'pejotização', não havendo se falar em
irregularidade na contratação de pessoa jurídica para prestar serviços terceirizados
na atividade-fim da contratante, tampouco presumir que essa contratação teria
como única finalidade reduzir a carga tributária da empresa."
O trecho acima é transcrição da ementa da decisão proferida pela 2ª Turma do
STF em 27/5/2024 nos autos da Reclamação Constitucional 58.665, tendo como
relator o ministro André Mendonça.
Terceirização por "pejotização". Há muito debatemos sobre o tema e nós, da área
trabalhista, apontamos que o STF está errado, que "pejotizar" é diferente de
terceirizar, atribuindo a falha ao fato de não haver, na composição atual,
integrante do Supremo Tribunal Federal oriundo do mundo do trabalho.
Cheguei a participar de evento sobre as decisões do STF em que se defendia um
suposto desconhecimento da Corte sobre Direito do Trabalho, fruto dos diversos
equívocos que, na ótica sempre enviesada por ideologia, aponta igualmente para
uma pauta não apenas ideológica, mas conspiradora da extinção da Justiça do
Trabalho.
O pressuposto é de que o STF - apenas em matéria trabalhista - seria
neoliberal, defensor dos interesses do capital, um verdadeiro agente do mal que
a todo custo procura dificultar a vida dos trabalhadores, um traidor da causa
que ratificou (quase integralmente) a malfadada reforma trabalhista.
Ordenamento jurídico
Confesso que acho graça, tanto das teorias conspiratórias, quanto da
ingenuidade de atribuir às decisões do STF mera ignorância sobre Direito do
Trabalho, como se os ministros, mesmo não oriundos da área trabalhista, não
fossem capazes de compreender as consequências de suas decisões e elaborarem
suas escolhas a partir de premissas existentes no próprio ordenamento jurídico.
E desconfiado que sou, resolvi fazer um exercício, que recomendo a todos da
área trabalhista: esquecer tudo que já ouviu falar sobre terceirização e reler
a atual legislação sobre o assunto, as Leis 13.429 e 13.467, ambas de 2017, que
alteraram a antiga Lei 6.019 de 1974, tornando-a uma espécie de "estatuto da
contratação por terceiros", algo assim.
Iniciando pelo conceito legal, contido no artigo 4º-A, não há ali nenhuma
menção à necessidade de, na terceirização, haver a existência de três pessoas,
como sempre defendemos.
Terceirização, para nós, sempre foi a contratação de trabalhadores através de
terceira pessoa, a prestadora de serviços (contratada), para trabalharem a
favor da tomadora dos serviços (contratante). O próprio vocábulo,
"terceirização", constitui um neologismo que surgiu dessa premissa: haver três
pessoas envolvidas nesse modelo de contratação.
Ocorre que a legislação não ratifica essa construção doutrinária. Vejam:
"Considera-se prestação de serviços a terceiros a transferência feita pela
contratante da execução de quaisquer de suas atividades, inclusive sua
atividade principal, à pessoa jurídica de direito privado prestadora de
serviços que possua capacidade econômica compatível com a sua execução".
O primeiro ponto é perceber que o legislador não utiliza, no conceito, do
vocábulo "terceirização", que já deveríamos abandonar, substituindo-o por
"prestação de serviços a terceiros".
Para o legislador, basta que, por exemplo, uma empresa delegue parte de sua
atividade a outra pessoa jurídica de direito privado. Isso, por si só, já
é "terceirizar", pouco importando se a prestadora de serviços vai contratar
empregados para cumprimento do escopo do contrato, se vai atender aos serviços
através de seus próprios sócios, se vai contratar outra pessoa jurídica para
tal (subcontratação), se vai contratar autônomos, cooperativados, eventuais
etc.
A regra é bastante clara e permite, sim, que a empresa contratada, prestadora
dos serviços delegados pela contratante, execute o objeto do contrato através
de seus próprios sócios, fenômeno que chamados de "pejotização".
A liberdade da empresa contratada, prestadora de serviços, em realizar a
escolha de como irá executar os serviços pactuados está evidente nos parágrafos
primeiro e segundo do mesmo artigo 4º-A da Lei 6.019/74. Explico.
O primeiro parágrafo autoriza o que podemos chamar de situação clássica: a
prestadora dos serviços (contratada) resolve admitir trabalhadores. Neste caso,
por óbvio, deverá contratar, remunerar e dirigir o trabalho de tais pessoas.
Na sequência, o mesmo parágrafo autoriza a subcontratação, ou seja, a
realização de nova "terceirização", delegando para outra empresa os serviços
que pactuou com a contratante. A nova empresa, por sua vez, poderá fazer
as mesmas escolhas (contratar trabalhadores, executar pelos seus sócios ou
subcontratar novamente).
Já o parágrafo segundo determina - e aí temos a mais clara autorização para a
"pejotização" -, que "não se configura vínculo empregatício entre os
trabalhadores, ou sócios das empresas prestadoras de serviços,
qualquer que seja o seu ramo, e a empresa contratante".
Que os trabalhadores contratados pelas empresas prestadoras de serviços não são
empregados da empresa contratante (tomadora) ninguém duvida, há décadas
assentamos essa regra.
A novidade, que poucos perceberam, reside na parte em que o legislador
positivou que os sócios das empresas prestadoras de serviços não possuem
vínculo empregatício com a contratante. E tal regra só faz sentido se
assumirmos que os sócios da prestadora estão, eles mesmos, despendendo energia
de trabalho a favor da empresa contratante. Ora, ora: pejotização.
Não bastasse isso, o artigo 5º-C, com viés nitidamente protetivo contra
fraudes, ratifica a conclusão anterior ao estabelecer que uma empresa não pode
contratar como prestadora de serviços "pessoa jurídica cujos titulares ou
sócios tenham, nos últimos dezoito meses, prestado serviços à contratante na
qualidade de empregado ou trabalhador sem vínculo empregatício, exceto se os
referidos titulares ou
sócios forem aposentados".
Qual a razão deste artigo senão coibir
fraude em pejotização? Impor uma quarentena para que um antigo trabalhador de
uma empresa não possa ser contratado como sócio de uma pessoa jurídica para
prestar serviços revela, por óbvio, que após o prazo legal de dezoito meses é
lícita a "terceirização" em que, por exemplo, um ex-empregado resolve criar uma
pessoa jurídica e executar serviços ele mesmo através dela: pejotização.
Fica evidente, portanto, que no modelo
atualmente em vigor a velha "terceirização" ganhou uma nova roupagem, sendo
definida pelo simples fato da delegação a terceiros de atividades de uma
empresa e, não, a contratação de trabalhadores através de terceiros.
E se "terceirizar" é delegar atividade,
nada impede, antes a lei autoriza, que seja contratada uma pessoa jurídica que
executa tais atividades por seus próprios sócios: pejotização.
Assim, "pejotizar" é "terceirizar".
Parece que os Ministros do STF não são tão desconhecedores do Direito do
Trabalho, nós é que estamos obtusos lendo o ordenamento jurídico com olhos de
catarata.
Será que nos falta humildade ou será um
caso grave de imunização cognitiva? É natural haver resistência à mudança, mas
a questão se torna um problema, como diz Simone Cunha, "quando o repertório de
nosso conhecimento não é suficiente para dar conta das demandas/exigências de
novos cenários. "Nesse momento é fundamental certa flexibilidade e capacidade
de gerar novas aprendizagens para que a adaptação possa se realizar. E
aí, muitas vezes, nos deparamos com barreira mentais que podem nos limitar."
Autor:
Otavio Torres Calvet é juiz do Trabalho no TRT-RJ, mestre e doutor em Direito
pela PUC-SP e membro da Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho
(ABMT).