Uma expressão latina muito comum no ambiente
empresarial - mais especificamente societária - é a affectio
societatis. Na publicação de hoje, o propósito será viabilizar a
compreensão do seu significativo (teórico e prático) e a exposição sobre o
papel exercido por ela na dinâmica dos relacionamentos internos nas sociedades
limitadas, normalmente compreendidas como sociedades de pessoas.
O ponto de partida deve ser entender que a constituição de uma sociedade
empresária passa pela assunção do compromisso, por todos os sócios, de que
adotarão esforços convergentes para viabilizar o atingimento de fins econômicos
comuns. Essa convergência de vontades e de esforços pode ser entendida como uma
"afeição societária ou afeição para a sociedade"1, desvinculando-se
de uma ideia de afeição emocional, e sim a pretensão de união de esforços no
âmbito da relação societária.
Como não há relação direta com aspectos emocionais ou afetivos, há a
possibilidade de se compreender a expressão latina, nos dias de hoje, como a
"disposição dos sócios em manter o esforço ou investimento comum"2,
de modo que, ainda que não haja afeto ou amizade entre os sócios, enquanto
houver interesses e esforços afins, restará preservada a affectio
societatis.
Essa particularidade é bastante importante na compreensão das sociedades
de pessoas (intuitu personae), visto que são sociedades em que a união
das pessoas (naturais ou jurídicas) em dada sociedade decorre de fatores
subjetivos, relativos às próprias pessoas, e não ao capital por eles aportado;
o cerne reside numa espécie de vínculo psicológico que une os sócios3.
Esse é o principal traço distintivo, por exemplo, das sociedades
anônimas, as quais são reconhecidamente sociedades de capitais, em que particularidades
individuais dos sócios pouco importam, haja vista que o que verdadeiramente
importa é o investimento por eles realizado. Justamente por isso é possível
adquirir quotas de sociedades anônimas de capital aberto na Bolsa de Valores,
mesmo sem conhecer qualquer um dos fundadores das companhias ou seus
administradores.
A affectio societatis pode ser compreendida em dois
diferentes aspectos: objetivo e subjetivo. No seu aspecto objetivo,
ela traz consigo o dever, imposto a todos os sócios, de condução de seus
comportamentos em prol da sociedade, visando à consecução dos seus fins
jurídico, econômico e social.
Quanto ao seu aspecto
subjetivo, observa-se a conclusão de que, caso um dos sócios
perca a affectio societatis, estará rompido, também, o animus
contrahendi (intenção de contratar sociedade) e não haverá
mais justificativa para que ele continue na sociedade4. Por conta
disso, em sociedades por prazo indeterminado, é admitido o exercício do direito
de retirada do sócio que não mais deseja permanecer vinculado aos demais.
Um exemplo prático de aplicação da affectio societatis na
realidade societária se deu no julgamento do Recurso Especial nº 285.821/SP5,
pela 6ª Turma do STJ. Neste julgamento, uma das sócias havia atuado como
fiadora da sociedade em contrato de locação, mas, posteriormente, por conta da
quebra da affectio societatis, retirou-se da sociedade, colocando fim ao
contrato societário. Todavia, teoricamente, ela seguiria atrelada ao contrato
de locação na condição de fiadora.
Apesar disso, o entendimento da Corte foi de que, assim como o contrato
de sociedade, o contrato de fiança é intuitu personae, tendo como premissa o
liame existente entre o fiador e o afiançado. No caso narrado, como a fiadora
não mais era sócia da sociedade afiançada, reconheceu ser legítima a sua
pretensão de ser exonerada
da fiança, visto que não mais mantinha affectio
societatis com a sociedade locatária.
Outro julgado bastante interessante para compreensão da affectio no
dia-a-dia das sociedades limitadas é o Recurso Especial nº 114.708/MG6,
julgado pela 3ª Turma do STJ. Nesse julgado, por conta do divórcio de um dos
sócios, a sua esposa tinha direito à metade das quotas por força da partilha
patrimonial com o fim do relacionamento. Entretanto, como a consorte não
tinha affectio societatis com os demais sócios daquela
sociedade, tinha ela legitimidade ativa para pedir a liquidação das quotas;
isto é, em vez de ingressar na sociedade, exigir indenização pelo valor da
participação societária que lhe foi endereçada por conta da extinção do
matrimônio.
Por fim, vale informar que, apesar de a regra em sociedades limitadas
ser a preservação da affectio societatis, é perfeitamente
possível que os sócios entendam por relativizar essa premissa, alterando regras
no contrato social. Um dos pontos mais influenciados pela maior ou menor
pretensão de salvaguardar a affectio reside nas normas
relativas à cessão de quotas de participação societária.
Quando o contrato
social for omisso, o sócio poderá ceder suas quotas (total ou
parcialmente) a outro sócio - independentemente de anuência dos demais - ou a
terceiro estranho à sociedade, desde que, neste segundo cenário, não haja
oposição de mais de 25% do capital social (art. 1.057 do Código Civil7).
Dá-se especial destaque à omissão do contrato, porque se trata de uma clara
hipótese de regulamentação
detalhada e diferente por iniciativa dos sócios.
Significa dizer, na prática, que os sócios poderão elaborar o contrato
social estabelecendo ou enrijecer
a affectio societatis ou atenuá-la.
Como exemplo de incremento de rigidez, poderá o contrato social estabelecer que
a cessão de quotas para
terceiro estranho dependerá de aprovação expressa pela unanimidade dos sócios. Por
sua vez, poderá o contrato social reduzir
a affectio e lhe dar maior caráter de
sociedade de capitais, estabelecendo, exemplificativamente, que
a cessão de quotas para
terceiros será livre, assim como a cessão para sócios.
Desse modo, é possível constatar que a figura jurídica da affectio
societatis, apesar de ser um conceito extremamente importante para
a teoria do Direito Societário, ela não se limita a abstrações. Os seus
desdobramentos prático-jurídicos são múltiplos, bem como ela admite modulações
na elaboração do contrato social e nos ajustes formais realizados pelos sócios,
a depender da sua maior ou menor leniência ao ingresso de terceiros estranhos.
Todos esses fatores reforçam a importância da elaboração de instrumentos
formalizadores de vontades bastante claros e transparentes, haja vista a sua
relevância para nortear a relação entre os sócios, bem como perante terceiros,
conferindo maior estabilidade e segurança, interna e externamente. A realização
de diálogos e reflexões com os suportes jurídico e contábil da sociedade fará
grande diferença positiva nesse processo, salientando-se que, ainda que já
formalizada a sociedade, será possível alterar o contrato social para
ajustá-los a novas pretensões e ambições dos sócios.
Para maiores informações sobre Direito Societário e Startups, acompanhe
nossas postagens e aguardamos comentários e dúvidas!
Autor: Rafael Duarte é Advogado,
responsável pelo setor de Direito Imobiliário do escritório Caputo Assessoria
Jurídica; Pós-graduado em Direito Público pela Escola Superior da Magistratura
Federal do Rio Grande do Sul; Pós-graduado em Direito Negocial Imobiliário pela
Escola Brasileira de Direito; Pós-Graduado Direito Imobiliário pela Faculdade
Legale/SP; Pós-graduando em Direito de Família e Sucessões pela Faculdade
Legale/SP; Membro da Comissão Direito Imobiliário da OAB/RS; Membro da Comissão
de Direito Sucessório do IBDFAM/RS; Atua na área empresarial com ênfase em
Startups e empresas do setor imobiliário. www.caputoduarte.com.br
1 MAMEDE, Gladston. Direito societário: sociedades
simples e empresárias. 10. ed. rev. e atual. - São Paulo:
Atlas, 2018. p. 81-82.
2 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial,
volume 2: direito de empresa. 16. ed. - São Paulo:
Saraiva, 2012. p 484.
3 RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial: volume
único. 10. ed. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo:
MÉTODO, 2020. p. 538.
4 MAMEDE, Gladston. Direito societário: sociedades
simples e empresárias. 10. ed. rev. e atual. - São Paulo:
Atlas, 2018. p. 82-83.
5 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 285.821/SP. Relator:
Ministro Hamilton Carvalhido, 6ª Turma. Brasília. DJ: 19/09/2002.
Disponível aqui. Acesso em: 12
out. 2020.
6 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 114.708/MG. Relator:
Ministro Waldemar Zveiter, 3ª Turma. Brasília. DJ: 19/02/2001. Disponível aqui. Acesso em: 12
out. 2020.
7 Código
Civil. Art. 1.057. Na omissão do contrato, o sócio pode
ceder sua quota, total ou parcialmente, a quem seja sócio, independentemente de
audiência dos outros, ou a estranho, se não houver oposição de titulares de
mais de um quarto do capital social.