O conceito de
acidente de trabalho, tradicionalmente vinculado ao ambiente físico da empresa,
tem evoluído à medida que os modelos de trabalho se transformam. A prática do
home office, intensificada pela pandemia de Covid-19, trouxe uma série de
questionamentos sobre a responsabilidade do empregador em um contexto onde o
controle direto sobre o ambiente de trabalho do colaborador se torna mais
limitado. Este artigo visa analisar o conceito de acidente de trabalho no home
office, os deveres do empregador, as implicações legais e as responsabilidades
compartilhadas, além de destacar os desafios que surgem com esse novo modelo de
organização do trabalho.
Crescimento do
trabalho remoto e seus desafios
O trabalho remoto,
ou home office, se tornou uma prática cada vez mais comum nos últimos anos,
especialmente com o avanço da tecnologia de comunicação e a necessidade de adaptação
das empresas durante a pandemia de Covid-19. Segundo dados da Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2020, o número de trabalhadores remotos no
Brasil aumentou consideravelmente, chegando a mais de 10 milhões de pessoas,
refletindo a adoção em massa dessa prática (IBGE, 2020). A aceleração desse
modelo de trabalho impôs novos desafios tanto para as empresas quanto para os
trabalhadores, principalmente em relação à regulamentação de direitos e
obrigações, como a questão da segurança no trabalho.
A adaptação das
empresas ao trabalho remoto trouxe benefícios claros, como a redução de custos
operacionais, flexibilidade no horário de trabalho e aumento da produtividade.
No entanto, também surgiram dificuldades, principalmente em relação à saúde e
segurança do trabalhador. O principal desafio é que, no home office, o
empregador perde o controle direto sobre o ambiente onde o trabalhador realiza
suas atividades, o que pode dificultar a implementação de medidas de segurança,
ergonomia e monitoramento de riscos.
O aumento do
trabalho remoto criou, portanto, um cenário em que a legislação precisa ser
adaptada para cobrir as novas dinâmicas laborais, equilibrando a proteção do
trabalhador com a viabilidade operacional das empresas.
Conceito de acidente
de trabalho: expansão da definição
A Constituição de
1988, em seu artigo 7º, inciso XXII, trata da responsabilidade do empregador em
reduzir os riscos inerentes ao trabalho, o que implica em adotar medidas de
segurança e saúde do trabalhador. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)
também prevê que cabe ao empregador cumprir as normas de segurança e medicina
do trabalho e fornecer orientações e treinamentos aos empregados para evitar
acidentes.
No entanto, quando
se trata de acidentes ocorridos em home office ou teletrabalho, o cenário se
torna mais complexo. A responsabilidade do empregador é subjetiva, ou seja, ele
só será responsabilizado se ficar demonstrada a culpa ou dolo em sua conduta.
Isso significa que, para que a empresa seja responsabilizada, é necessário
comprovar que houve omissão por parte do empregador na implementação de medidas
de segurança que, de alguma forma, poderiam ter evitado o acidente.
O conceito
tradicional de acidente de trabalho no Brasil está regulamentado pela Lei nº
8.213/1991, que define como acidente de trabalho qualquer ocorrência que
resulte em lesão corporal ou perturbação funcional durante o desempenho de
atividades profissionais, seja no local de trabalho ou em deslocamento a
serviço da empresa. Tradicionalmente, entende-se que o acidente ocorre dentro
do ambiente físico da empresa, no local determinado pelo empregador para o
exercício das funções.
Contudo, a
legislação brasileira não limita o acidente de trabalho ao ambiente da empresa.
O artigo 21 da Lei nº 8.213/1991 menciona que o acidente de trabalho pode
ocorrer "no local e no horário de trabalho", o que inclui a possibilidade de o
acidente ocorrer fora das dependências da empresa, mas durante o horário em que
o trabalhador executa suas atividades. Isso é relevante para o contexto do home
office, pois amplia a interpretação sobre o que seria o "local de trabalho"
para o trabalhador remoto, considerando que ele pode estar em sua casa ou em
outro lugar fora do controle direto da empresa.
A legislação brasileira
também prevê que, se o acidente ocorrer durante o exercício das funções
profissionais, independentemente de o ambiente ser o local tradicional da
empresa, ele pode ser considerado como acidente de trabalho). Portanto, um
acidente que ocorra no home office, desde que no período de trabalho e
relacionado às funções do empregado, pode ser caracterizado como acidente de
trabalho.
A grande questão que
se coloca é como a responsabilidade do empregador se aplica em um cenário em
que o local de trabalho não está mais sob seu controle direto. Questões como a
organização do espaço de trabalho, a adequação do mobiliário e a fiscalização
da saúde do trabalhador se tornam cruciais para que o acidente de trabalho seja
configurado como responsabilidade do empregador.
Responsabilidade do
empregador no contexto do home office
a) O dever de
garantir um ambiente de trabalho seguro
A responsabilidade
do empregador pela saúde e segurança de seus trabalhadores está prevista tanto
na CLT quanto nas Normas Regulamentadoras (NRs) do Ministério do Trabalho. O
artigo 157 da CLT estabelece que cabe ao empregador a obrigação de garantir um
ambiente de trabalho seguro, prevenindo acidentes e promovendo a saúde do
trabalhador por meio de medidas adequadas
Quando o trabalho é
realizado no home office, o empregador ainda tem o dever de proporcionar as
condições mínimas para a segurança do trabalhador, ainda que ele não esteja
fisicamente no local da empresa. Isso pode incluir: fornecimento de
equipamentos de proteção adequados, como cadeiras e mesas ergonômicas, quando
necessário; orientações sobre ergonomia, pausas no trabalho e boas práticas
para evitar lesões; treinamentos sobre segurança no trabalho remoto e a
importância de cuidar da saúde física e mental enquanto se trabalha de casa
No entanto, um dos
maiores desafios é que o empregador não tem controle direto sobre a organização
do espaço de trabalho do empregado em casa. Isso significa que, enquanto a
legislação exige que o empregador forneça as condições mínimas de segurança,
ele depende do comprometimento do trabalhador em seguir as orientações e
utilizar os recursos fornecidos. Caso o trabalhador não tenha os equipamentos
necessários ou não tenha condições adequadas em sua residência, o empregador
tem o dever de corrigir essas falhas o mais rapidamente possível
Como ensina
Sebastião Geraldo de Oliveira, em sua obra sobre indenizações por acidentes de
trabalho, a responsabilidade civil do empregador ocorre quando há dolo ou culpa
em sua conduta. A responsabilidade subjetiva exige que seja comprovado o nexo
de causalidade entre a conduta da empresa e o dano sofrido pelo trabalhador,
além da culpa ou dolo do empregador. No caso mencionado, não ficou comprovado
que a empresa tenha agido de forma negligente ou tenha violado qualquer norma
de segurança do trabalho relacionada ao acidente.
Ademais, a
responsabilidade objetiva, que não exige comprovação de culpa ou dolo,
aplica-se apenas em atividades que envolvem risco acentuado, o que não parece
ser o caso do trabalhador em questão, que desempenhava suas funções de forma
remota e sem interação direta com animais, nem qualquer obrigação contratual
para tal.
Assim, é importante
que os trabalhadores e empregadores tenham cautela no ajuizamento de ações
relacionadas a acidentes de trabalho, especialmente quando estes ocorrem em
situações que fogem do controle da empresa. O direito de ação deve ser exercido
de maneira responsável, evitando-se a litigância abusiva, que pode comprometer
o sistema judiciário.
b) Impossibilidade
de fiscalização direta
Ao contrário do
ambiente de trabalho tradicional, onde o empregador pode monitorar as condições
de segurança e ergonomia dos empregados, o home office impõe limitações
significativas quanto à fiscalização. O empregador não pode entrar diretamente
na casa do trabalhador para verificar se ele está utilizando uma cadeira
adequada ou se está respeitando as normas de ergonomia. Isso coloca o
empregador em uma posição difícil, pois, embora tenha a responsabilidade de
garantir um ambiente de trabalho seguro, a fiscalização efetiva das condições
depende, em grande parte, da confiança mútua entre empregado e empregador.
Essa limitação de
fiscalização direta significa que o empregador deve adotar uma postura proativa
na comunicação com seus trabalhadores, fornecendo informações claras sobre os
cuidados que devem ser tomados, estabelecendo políticas de saúde e segurança no
trabalho remoto e incentivando o diálogo constante sobre possíveis melhorias no
ambiente de trabalho.
c) Responsabilidade
solidária e relação de confiança
A responsabilidade
por acidentes de trabalho no home office é, em muitos casos, compartilhada
entre empregador e empregado. Embora o empregador tenha a obrigação de fornecer
as condições mínimas de segurança, o trabalhador também deve tomar medidas para
garantir que seu ambiente de trabalho seja adequado. A responsabilidade
solidária implica que ambas as partes são corresponsáveis, sendo necessário
analisar as circunstâncias de cada acidente para determinar quem tem maior
culpa ou omissão
Por exemplo, se o
trabalhador não seguiu as orientações fornecidas pelo empregador ou não
utilizou os equipamentos adequados, ele pode ser responsabilizado em parte pela
ocorrência do acidente. Por outro lado, se o empregador não forneceu as
condições mínimas de segurança, como mobiliário adequado, e não fez as
orientações necessárias sobre ergonomia, ele pode ser responsabilizado pela
falha na prevenção do acidente
Essa relação de
confiança implica que tanto empregador quanto empregado devem colaborar para
garantir que o trabalho remoto seja realizado de maneira segura, respeitando as
normas de segurança e buscando minimizar os riscos de acidentes
Papel do
trabalhador: responsabilidade compartilhada
Embora a
responsabilidade do empregador seja clara, o trabalhador também desempenha um
papel crucial na prevenção de acidentes em home office. O trabalhador deve:
- Organizar seu
espaço de trabalho de maneira segura, seguindo as orientações do empregador
sobre ergonomia e segurança (Santos, 2020).
- Utilizar
adequadamente os equipamentos fornecidos, como cadeiras, teclados e suportes
para o computador.
- Respeitar as
pausas durante a jornada de trabalho, evitando sobrecarga física e mental
Se o trabalhador não
seguir as orientações e negligenciar as condições de segurança, ele pode ser
responsabilizado por não adotar medidas adequadas para proteger sua saúde. Em
casos de acidentes, é importante que os tribunais considerem as ações de ambos
os lados, empregador e empregado, para determinar a responsabilidade de cada um
Limite da
responsabilidade do empregador
A responsabilidade
do empregador em relação aos acidentes de trabalho em home office é um tema complexo,
que exige uma análise detalhada das circunstâncias de cada caso. O empregador
tem o dever de fornecer condições mínimas de segurança e orientações para
garantir que o trabalhador possa exercer suas atividades de maneira segura,
mesmo que esteja fora do ambiente físico da empresa. No entanto, o trabalhador
também tem responsabilidades, devendo organizar seu espaço de trabalho e seguir
as orientações recebidas
A legislação e a
jurisprudência têm se adaptado aos novos tempos, mas ainda há muitos desafios a
serem superados para garantir que os direitos dos trabalhadores sejam
protegidos de forma justa e eficaz no contexto do trabalho remoto. O equilíbrio
entre os deveres do empregador e as responsabilidades do trabalhador é
essencial para garantir um ambiente de trabalho seguro, seja no escritório,
seja em casa (Cavalcante, 2021; Silva, 2020).
Referências:
BRASIL. Lei nº
8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da
Previdência Social e dá outras providências.
BRASIL. Consolidação
das Leis do Trabalho (CLT). Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943.
Autores:
Sérgio Pelcerman. É sócio da Área Trabalhista do
Almeida Prado & Hoffmann Advogados.
Barbara Alves. É advogada da equipe trabalhista do
Almeida Prado & Hoffmann Advogados.