Em sua obra, Giorgio
Agamben trata de figuras limítrofes: o banido, o internado, o homem reduzido à
mera existência - corpos sobre os quais o direito paira sem se efetivar. A
estes, resta apenas a inscrição vazia da norma jurídica, que se apresenta sem
jamais protegê-los. É o caso do homo sacer, uma obscura figura existente
no Direito Romano arcaico, na qual a vida humana é incluída no ordenamento
jurídico unicamente sob a forma de sua exclusão (ou seja, de sua absoluta
matabilidade). Trata-se daquele que pode ser morto, mas não sacrificado; que
existe à margem, mas sob vigilância constante. Não está fora da lei - ao
contrário, é nela que encontra sua condenação. Capturado para ser excluído,
reconhecido apenas para ser abandonado, vive num limiar em que o jurídico e o
político se esvaziam de substância e tornam-se pura forma de dominação [1].
No Brasil, nos dias
atuais, penso que uma nova figura jurídica se assemelha ao homo sacer: o
trabalhador "pejotizado". Presente no cotidiano das empresas, cumpre ordens,
respeita hierarquias, entrega resultados. No entanto, não se enquadra mais na
moldura jurídica do empregado. É chamado de parceiro, associado, empreendedor.
A linguagem jurídica, que antes o protegia, agora o redesenha para expulsá-lo
do campo da tutela. Não se trata de informalidade ou ausência de normas - ao
contrário, há contratos, cláusulas, notas fiscais. Há forma, porém não há
substância. Há inegável vínculo, mas não reconhecimento.
A Consolidação das
Leis do Trabalho segue em vigor. As súmulas, a jurisprudência e os direitos
tidos como fundamentais continuam ali, como móveis cobertos por lençóis numa
casa abandonada, de maneira que o que se observa é inquietante: a suspensão
seletiva do direito. Um estado de exceção que se infiltra no cotidiano e opera
por normalidade. O trabalhador é juridicamente incluído apenas para ser
politicamente descartado. Sua cidadania é uma formalidade sem corpo. Ele é a
revelação da vida nua na ordem neoliberal - uma existência exposta, legalizada
e, ainda assim, desprotegida.
A vida nua do
trabalhador brasileiro
A classe
trabalhadora brasileira sempre esteve submetida a ciclos de precarização,
informalidade e desproteção. Trabalhadores domésticos, por exemplo,
historicamente habitaram zonas de não-direito, não porque estivessem
formalmente excluídos da legislação, mas porque o Estado simplesmente não lhes
garantiu, de forma efetiva, proteção jurídica concreta.
Esse cenário,
contudo, é distinto daquele que hoje se desenha com a pejotização em massa.
Aqui, não se trata mais da ausência da lei, mas de algo mais sofisticado - e
mais cruel: a existência formal da norma e sua negação concreta, inclusive com
o aval do Supremo Tribunal Federal. Trata-se, portanto, de um processo que se
aproxima daquilo que Giorgio Agamben relaciona à exceção jurídica: a situação
em que o ordenamento jurídico inclui determinados sujeitos apenas para
negar-lhes, deliberadamente, os efeitos daquela inclusão [2].
No passado, muitos
trabalhadores foram invisibilizados pela ausência do Estado. Hoje, consoante a
jurisprudência majoritária do STF, que pode se confirmar definitivamente com o
julgamento do Tema 1.389 de repercussão geral, aqueles que antes estavam
protegidos pela legislação e possuíam mecanismos jurídicos para buscar
efetividade são formalmente reconhecidos como pessoas trabalhadoras, mas postos
fora da proteção jurídica por meio de figuras pseudolegais como a pejotização.
A precariedade, que antes nascia da omissão da norma ou da ausência de
fiscalização, agora se apresenta com a chancela da legalidade.
O abandono torna-se
uma política deliberada de gestão da vida dos trabalhadores e trabalhadoras
pelo próprio Estado, algo próprio do momento do capitalismo em que vivemos: o
neoliberalismo. Para Pierre Dardot e Christian Laval, o neoliberalismo é
um "sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro,
estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas
da vida". Não se trata, portanto, de uma política econômica, como tantas
outras, mas como um complexo e totalizante arranjo, que passa a reorganizar o
tecido social numa perspectiva empresarial que gira em torno da lucratividade
do capital. Nesse quadro, a partir da razão neoliberal, o vínculo trabalhista
se torna um obstáculo à liberdade empresarial estendida aos indivíduos - e é por
isso que ele precisa acabar [3].
Em sentido
semelhante, Wendy Brown identifica no neoliberalismo um conglomerado de
políticas voltadas à privatização de bens e de serviços públicos, ao
enfraquecimento das regulações trabalhistas, à redução das políticas de bem-estar
social e à criação de ambientes favoráveis ao capital financeiro e aos
investidores estrangeiros. Por isso, a proteção trabalhista é tratada como
obstáculo a ser removido. A pejotização emerge como expressão prática dessa
racionalidade: dissolve o vínculo de emprego, fragiliza a negociação coletiva e
desloca o risco econômico para o trabalhador [4].
O trabalhador
pejotizado como o homo sacer da era neoliberal
Na lógica
agambeniana, o homo sacer é aquele que pode ser morto, mas não sacrificado. O
trabalhador pejotizado é aquele que pode ser explorado, mas não indenizado;
pode ser dispensado, mas não amparado. Sua exclusão é integral: ele não é nem
sujeito pleno de direitos, nem um empreendedor autêntico. Está fora do ius
laborandi e não pertence ao campo da livre iniciativa. É, literalmente, uma
vida capturada e desprovida de forma [5].
Mais do que
metáfora, essa exclusão produz efeitos concretos e letais. Ao ser retirado do
regime celetista, o trabalhador pejotizado também poderá ser concretamente
excluído da proteção garantida pelas normas regulamentadoras de saúde, higiene
e segurança do trabalho. Não tem acesso a equipamentos de proteção individual,
a treinamentos obrigatórios, a exames periódicos. Pode, sim, ser literalmente
morto, sem que isso implique qualquer responsabilização patronal - como se sua
vida estivesse fora do alcance do direito.
Em tempos de
algoritmos, inteligência artificial e precarização digital, a figura do homo
sacer se atualiza nos trabalhadores plataformizados, "consultores", "agentes de
negócio", que cumprem jornada regular sem qualquer proteção. Mas é
preciso ir além: o cenário que hoje abarca esses segmentos tende a englobar a
imensa maioria da força de trabalho brasileira, com a chancela da Corte
Constitucional.
A notícia recente da
contratação de garis como pessoas jurídicas, como denunciado com precisão por
Cássio Casagrande, sequer podem buscar a tutela judicial, ante a suspensão dos
processos que discutem vínculo de emprego por determinação do ministro Gilmar
Mendes, escancara o risco: não se trata de uma falha pontual ou desvio isolado,
mas de um novo modelo jurídico de gestão do trabalho. Nenhum trabalhador da
esfera privada estará protegido. A exceção jurídica se tornará o novo
paradigma [6].
Se o passado do
trabalho no Brasil é marcado pela precariedade, o futuro será marcado pelo
abandono. O pejotizado não terá aposentadoria minimamente digna. Não contará
com tempo mínimo de contribuição, nem com estabilidade nos vínculos, nem com
contribuições regulares. Envelhecerá como viveu: à margem. A dignidade na
velhice, que o sistema previdenciário prometia como contrapartida à extenuante
vida laboral, torna-se promessa vazia. A vida nua, nesse contexto, é também a
vida descartada.
O STF como soberano
na exceção trabalhista
Para Carl Schmitt o
soberano é quem decide sobre o estado de exceção - aquele que, em nome da
preservação da ordem, tem o poder de suspender o ordenamento jurídico [7]. Na visão de Agamben, a exceção deixa de ser
excepcional e passa a ser estrutural no mundo moderno: ela se torna o mecanismo
pelo qual o direito opera, incluindo sujeitos apenas para abandoná-los,
mantendo-os juridicamente capturados numa zona de não-direito [8].
É nesse contexto que
o Supremo Tribunal Federal, hoje, assume o papel de soberano da biopolítica
neoliberal brasileira. Não se trata apenas de suspender julgamentos ou evitar o
enfrentamento da questão. Trata-se de algo mais grave: o STF está, em
sucessivas reclamações constitucionais, reconhecendo como válida a contratação
de trabalhadores por meio de pessoas jurídicas, ainda que submetidos a jornadas
regulares, subordinação direta e ausência de qualquer autonomia material, sem
que a legislação trabalhista tenha sido revogada ou alterada.
Essa nova
configuração jurídica não elimina apenas os direitos trabalhistas clássicos.
Ela aniquila a possibilidade de representação sindical. O trabalhador
pejotizado não é representado por sindicato de categoria, não participa de
negociações coletivas, não delibera em assembleias. É mantido fora das
estruturas de proteção coletiva, justamente para não poder reivindicar. A
pejotização é, assim, um instrumento de silenciamento político.
O Supremo Tribunal
Federal, ao validar esse modelo, não apenas tolera a exceção: ele a produz, a
organiza, a administra. Decide quem será sujeito de direito e quem será tratado
como mera engrenagem. Como já apontava Agamben, o soberano não escolhe entre
lícito e ilícito - ele define quem será incluído na esfera jurídica e quem será
abandonado à sua margem.
A figura do
trabalhador pejotizado é, portanto, a nova vida nua da ordem brasileira:
formalmente incluída, substancialmente excluída. O STF traça o limiar entre os
que serão protegidos e os que serão descartáveis. Já não há crise de
legalidade. O que há é sua reconfiguração perversa: o uso do próprio direito
para negar sua promessa fundante.
Referências
bibliográficas:
AGAMBEN, Giorgio.
Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. São Paulo: Boitempo, 2004.
AGAMBEN, Giorgio.
Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
AGAMBEN, Giorgio.
Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. AGAMBEN, Giorgio. Means Without Ends.
Minneapolis: University of Minnesota Press, 2000. BENJAMIN,
[1] AGAMBEN,
Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua. Tradução de Henrique
Burgo. 2ª ed. belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p. 11-16.
[2] ABDALLA,
Guilherme de Andrade Campos. O Estado de Exceção em Giorgio Agamben: Contribuições
ao Estudo da Relação Direito e Poder. 224f. Dissertação (Mestrado em Direito) -
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
[3] DARDOT,
Pierre; LAVAL, Cristian. A nova razão do mundo: Ensaio sobre a sociedade
neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 8-10.
[4] BROWN,
Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: A ascensão política antidemocrática
no ocidente. Santos: Editora Politeia. 2019. p. 30.
[5] AGAMBEN,
Giorgio. Means Without Ends. Minneapolis: Minnesota University Press.
2000, p. 106.
[6] CASAGRANDE,
Cássio. Garis e lixeiros pejotizados: parabéns, ministros do STF. JOTA,
2024. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/o-mundo-fora-dos-autos/garis-e-lixeiros-pejotizados-parabens-ministros-do-stf-03052024
[7] SCHMITT,
Carl. Teología Política. Tradução de Francisco Javier Conde e Jorge
Navarro Pérez. Madrid: Editorial Trotta, 2009, p. 13
[8] AGAMBEN,
Giorgio. Estado de Exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo:
Boitempo Editorial. 2004. p. 59.
Autor: João Guilherme Walski de Almeida, é advogado do
Departamento Trabalhista da Andersen Ballão Advocacia, bacharel e mestrando em
Direito pela Universidade Federal do Paraná e membro da Comissão de Defesa dos
Direitos Humanos da OAB/PR.