O Supremo Tribunal
Federal vai decidir se é constitucional a incidência de Imposto de Renda da
Pessoa Física (IRPF) sobre o ganho financeiro decorrente da doação de bens a
título de adiantamento da legítima. A controvérsia é objeto do Recurso
Extraordinário (RE) 1.522.312/SP, que teve a repercussão geral reconhecida sob
o Tema 1.391, e aguarda julgamento definitivo pelo plenário.
No centro da
discussão está o artigo 23 da Lei nº 9.532/1997, que autoriza a avaliação de
bens transmitidos por herança ou doação a valor de mercado. Se essa opção for
exercida pelo doador ou pelo espólio, a diferença entre o valor histórico do
bem e o valor de mercado será considerada ganho de capital, sujeitando-se à incidência
do IRPF. Essa sistemática se apoia também no artigo 3º, §3º da Lei nº
7.713/1988, que inclui a doação entre as operações geradoras de alienação para
fins de apuração do imposto de renda sobre ganho de capital.
Ocorre que essa
pretensão fiscal esbarra em um vício estrutural: a hipótese legislativa
apresenta um problema no critério material da regra-matriz de incidência
tributária do IRPF. De acordo com o artigo 43 do Código Tributário Nacional
(CTN), a incidência do imposto pressupõe a aquisição de disponibilidade
econômica ou jurídica de renda ou proventos. Isso significa que o aspecto
material da norma só se completa com a existência de um acréscimo patrimonial
efetivo - uma manifestação nova de riqueza.
Conceito de
disponibilidade
Como ensina Luis
Eduardo Schoueri, o conceito de "disponibilidade" não pode ser interpretado em
sentido meramente formal ou contábil. Ele resgata, com apoio em Alcides Jorge
Costa, uma compreensão substancial da disponibilidade:
"Igualmente
importante é a definição que Alcides propõe para a 'disponibilidade': poder
dispor é 'empregar, aproveitar, servir-se, utilizar-se, lançar mão de, usar'.
Esse conceito parece muito adequado para se compreender o que o legislador quis
atingir: ele busca a renda quando ela é disponível. Disponível para quê,
pergunto eu. Ora, disponível para o contribuinte dela fruir. E se ele pode
fruir da renda, também pode pagar o imposto. Noutras palavras, o contribuinte
só é tributado porque tem condições de pagar o imposto. Eis a relação da
disponibilidade com a capacidade contributiva (capacidade de pagar o
imposto)." [1]
A leitura
substancial da disponibilidade - como fruição real da renda - reforça a
impossibilidade de tributar doações e heranças a valor de mercado como se
houvesse ganho de capital. A transmissão gratuita de patrimônio, sem ingresso
de riqueza nova e sem fruição econômica pelo contribuinte, não realiza a
condição que legitima a incidência do IR. A norma infraconstitucional,
portanto, não apenas carece de suporte na realidade fática, como também
desconsidera o nexo entre disponibilidade e capacidade contributiva.
Apesar disso, em
julgamentos anteriores à fixação da repercussão geral, como no RE 1.269.201
(2021) e no ARE 1.425.609 (2024), ministros da 2ª Turma do STF sustentaram que
não haveria inconstitucionalidade. Para os votos vencidos nesses julgados -
notadamente os da ministra Cármen Lúcia e do ministro Gilmar Mendes -, o
legislador não teria criado um novo fato gerador, mas apenas diferido a
realização da disponibilidade jurídica de renda para o momento em que o bem
fosse declarado a valor de mercado.
Essa interpretação,
entretanto, conflita com a teoria do acréscimo patrimonial, amplamente aceita
pela doutrina tributária brasileira. A leitura que parece mais alinhada aos
fundamentos constitucionais do imposto de renda é a de que a norma tributária deve
incidir apenas quando houver uma efetiva entrada de riqueza no patrimônio do
contribuinte. Mais que presumida, essa riqueza precisa ser concreta, disponível
e realizada, não bastando uma valorização patrimonial ainda não convertida em
resultado econômico no mundo dos fatos.
Conceito jurídico de
renda
Conforme explica
Leandro Paulsen, o conceito jurídico de renda deve estar fundamentado na
realização concreta de riqueza nova, sendo inadmissível a simples presunção
legal desvinculada da realidade econômica. Em sua análise:
"O conceito jurídico
mais adequado de renda é o de acréscimo patrimonial, englobando os ganhos de
capital, exceto as transferências de renda, tais como doações e heranças,
segundo o ordenamento jurídico constitucional de 1988. (.) O conceito legalista
(fiscalista) de renda, no sentido de ser considerado renda aquilo que a lei
ordinária do imposto estabelecer que é, está ultrapassado e superado pela
jurisprudência do STF, como nos leading cases de desapropriação (não incidência
do imposto), da não tributação das variações monetárias (ganho nominal e não
real) e da não tributação adicional pelo Imposto de Renda com relação aos
lucros distribuídos (art. 38 da Lei 4.506/64). (.) Quaisquer limitações
temporais ou quantitativas com relação às despesas e provisões devem guardar
estrita compatibilidade com a teoria do acréscimo patrimonial e com a atividade
do contribuinte, sob pena de serem inconstitucionais, por violarem o conceito
jurídico de renda, por implicarem tributação direta ou indireta do capital e
não do seu efetivo acréscimo e por afrontarem a capacidade contributiva do
sujeito passivo da obrigação tributária, além de mitigarem ou anularem a rígida
discriminação da competência tributária entre União, Estados e
Municípios." [2]
Essa compreensão
fortalece a crítica à tentativa de tributar doações e heranças com base em mera
valorização de ativos, pois se trata de uma transferência de patrimônio que não
gera renda em sentido jurídico-constitucional. Permitir o contrário seria
retroceder ao modelo fiscalista, já superado, que tolerava hipóteses de
incidência tributária dissociadas da materialidade econômica. Essa é, aliás, a
diretriz fixada pelo próprio Supremo em outras situações de reconhecimento da
inexistência de critério material válido para o IRPF, como nos casos de juros
de mora por danos morais (RE 855.091/RS) e lucros não distribuídos (RE
541.090/PR). Em ambos, a Corte reconheceu que, sem acréscimo patrimonial, não
há como se falar em renda tributável.
Risco de
bitributação
Em julgamentos
anteriores envolvendo a problemática discutida no tema 1.391 do STF, como no RE
1.387.761, parte da controvérsia foi direcionada à possibilidade de
bitributação, tese que chegou a ser reconhecida pelo ministro Luís Roberto
Barroso. A União, por sua vez, sustenta que não há bitributação, já que imposto
de renda e ITCMD possuem sujeitos passivos e bases de cálculo distintos.
Argumenta ainda que o imposto de renda incide apenas sobre a valorização
patrimonial ocorrida entre a data de aquisição e a data de alienação do bem, e
não sobre a transmissão gratuita em si.
Sob o ponto de vista
técnico, no entanto, o vício central da norma não está na eventual sobreposição
de competências - que, inclusive, beneficiaria o contribuinte -, mas na
ausência de materialidade econômica suficiente para legitimar a incidência.
Portanto, a inconstitucionalidade decorre da não satisfação do critério
material da regra-matriz de incidência do IRPF, pois não há ingresso de riqueza
nova nem manifestação concreta de capacidade contributiva que justifique a
tributação.
A expectativa,
portanto, é que o julgamento do Tema 1.391 sirva para reafirmar os limites da
regra-matriz de incidência do IRPF. No entanto, caso a definição da
problemática em questão venha a validar a tributação pretendida pelo artigo 23
da Lei nº 9.532/1997, estaremos diante de um preocupante retrocesso no
desenvolvimento do direito tributário brasileiro. Ao admitir a incidência do
IRPF sem o preenchimento do critério material da regra-matriz, a corte
constitucional abrirá um precedente perigoso, permitindo que a noção de renda
se descole de sua essência econômica e constitucional. Isso fragilizaria a
própria lógica do sistema tributário, ao legitimar a incidência do imposto
sobre hipóteses que, embora formalmente previstas em lei, carecem de
correspondência com a efetiva realidade econômica.
[1] (SCHOUERI,
Luis Eduardo. Comentários - Imposto sobre a Renda: A Aquisição da
Disponibilidade Jurídica ou Econômica como seu Fato Gerador. In: OLIVEIRA, R.
Mariz de; et al. (Org.). Diálogos Póstumos com Alcides Jorge Costa. São Paulo:
Instituto Brasileiro de Direito Tributário, 2017. p. 236-239).
[2] (PAULSEN,
Leandro. Constituição e código tributário comentados: à luz da doutrina e da jurisprudência.
São Paulo: Saraiva, 2023, p. 292).
Autor: Pedro Henrique Paludo Laus, é advogado
tributarista e empresarial e pós-graduando em Direito Tributário pelo Ibet. Dr.
Pedro Laus é parceiro da M&M Assessoria Contábil