No último dia 18 de
março, o governo federal encaminhou à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei
1.087/2025 [1], que corrige a faixa de isenção do Imposto de Renda das Pessoas
Físicas e cria, de outro lado, o Imposto de Renda das Pessoas Físicas Mínimo, o
IRPFM. O objetivo da nova figura seria tributar "altas rendas" decorrentes de
distribuição de dividendos, ou seja, tributar rendimentos decorrentes da
atividade empresarial transferidos à pessoa física.
O PL seguiu
acompanhado da Mensagem de Urgência nº 299/2025, impondo à Câmara o prazo de 45
dias para análise, nos termos do artigo 64, §2º, da CF [2]. Na prática, caso a
matéria não seja incluída em pauta até esta sexta (3/5), ocorrerá o sobrestamento
da agenda legislativa.
Objetivos do governo
A Exposição de
Motivos contida no PL demonstra que a proposta tem por premissa central a busca
pela maior justiça fiscal no Brasil. As razões para instituição do IRPFM são
claramente apontadas na Nota Técnica do Ipea mencionada no documento, indicando
elevada concentração de renda no país, com destaque para o 1% "mais rico da
população". Essa parcela detém majoritariamente rendimentos oriundos do
capital, refletindo, nos dizeres governamentais, um quadro de regressividade na
tributação das rendas mais altas, sobretudo em razão das atuais isenções sobre
lucros e dividendos, apontadas pela exposição como "caso raro no mundo atual".
A introdução desse
imposto mínimo, com caráter progressivo entre 0% e 10%, busca atacar a raiz
dessa regressividade tributária, criando uma barreira ao acúmulo de capital não
tributado nas esferas pessoais. A progressividade é estabelecida através de uma
fórmula matemática aplicável a rendimentos anuais superiores a R$ 600 mil,
chegando a uma tributação mínima de 10% para rendimentos iguais ou superiores a
R$ 1,2 milhão.
Complementarmente, o
projeto prevê tributação antecipada de 10%, mediante retenção na fonte, sobre
lucros e dividendos distribuídos mensalmente, quando superiores a R$ 50 mil.
Essa medida visa evitar, supostamente, evasão da tributação mínima,
estabelecendo controle mais eficiente e antecipado sobre esses rendimentos.
Outro aspecto
relevante contido na exposição de motivos é o reconhecimento, pelo Governo, de
que o IRPFM não deve acarretar dupla tributação excessiva. Por isso, foi
proposto um "redutor" que leva em consideração a carga tributária efetiva já
suportada pela pessoa jurídica que gera lucros distribuídos aos sócios,
limitando o IRPFM a uma carga teoricamente razoável.
O mecanismo busca
garantir que a carga combinada de IRPJ, CSLL e IRPFM não ultrapasse as
alíquotas nominais vigentes sobre o lucro das empresas. Também está previsto
mecanismo redutor similar de crédito para dividendos remetidos ao exterior,
evitando sobrecarga tributária internacional, que possa desencorajar o
investimento estrangeiro no Brasil.
A intenção do
governo federal nos parece louvável, mas a pergunta básica que surge é: apesar
dos redutores imaginados, o mecanismo de tributação na pessoa física, de
dividendos isentos, é capaz de assegurar a concretização dos objetivos
almejados pelo governo federal? A resposta a essa indagação nos parece
claramente negativa.
Deslocamento
conceitual da base de cálculo
Uma fragilidade
central do PL 1.087/2025 reside na alteração conceitual profunda ao deslocar,
na prática, a tributação da renda da pessoa jurídica, baseada no lucro fiscal,
para o lucro contábil que autoriza a distribuição de dividendos [3]. Essa
modificação rompe com a lógica histórica e consolidada do Imposto sobre a Renda
no Brasil, que prevê deduções expressamente autorizadas pela legislação fiscal
para a apuração do IRPJ e da CSLL.
Aqui um parêntese se
faz necessário. De acordo com o artigo 202, caput e §§ 1º e 2º, da
Lei nº 6.404/76 [4], os dividendos são retirados do lucro líquido contábil
ajustado. Portanto, os dividendos são distribuídos com base no lucro
contábil, e não no lucro fiscal. Quando a empresa obtém lucro contábil
positivo, está habilitada a distribuir dividendos, mesmo que, eventualmente,
tenha prejuízo fiscal (decorrente, por exemplo, da compensação de prejuízos
anteriores ou utilização de incentivos fiscais).
Assim, o mencionado
deslocamento conceitual ocorre porque a proposta do PL 1087/2025 define que o
IRPFM incidirá sobre dividendos distribuídos com base no lucro contábil,
independentemente das deduções fiscais aplicadas ao lucro fiscal. Isso gera uma
situação peculiar, pois o lucro que já foi tributado em nível societário é o
lucro fiscal, não o contábil. Pode haver casos em que o lucro contábil
distribuído aos sócios, sujeito ao novo IRPFM, é maior do que o lucro fiscal
efetivamente tributado pela empresa.
Essa situação faz
com que o novo imposto incida sobre um valor patrimonial que já foi oferecido à
tributação, mas que, em razão das regras decorrentes dos aproveitamentos de
prejuízos fiscais e bases negativas, resultaram em valores a recolher não
correspondentes ao simples somatório de alíquotas vigentes sobre o lucro
contábil.
Ora, os montantes
efetivamente recolhidos a título de IRPJ e CSLL são resultantes da aplicação da
legislação vigente. A empresa pode ter recolhido integralmente IRPJ e CSLL
sobre uma base fiscal menor, enquanto o IRPFM incide sobre uma base contábil
maior. Tal circunstância gera um descompasso entre os valores tributados na
pessoa jurídica e aqueles que serão tributados na pessoa física. Anula-se
assim, de forma disfarçada, deduções previstas legalmente.
Dessa forma, o
redutor previsto no PL 1087/2025, que limita o somatório das alíquotas efetivas
(IRPJ + CSLL + IRPFM) às alíquotas nominais conjuntas do IRPJ e da CSLL
(geralmente 34%), não resolve qualquer problema. Isso, porque o redutor apenas
limita o total da tributação ao teto nominal de IRPJ e CSLL, sem considerar
efetivamente que o lucro distribuído, tributado pelo IRPFM, pode incluir
valores que não corresponderam à real renda tributável (fiscal) da empresa. Na
prática, o imposto adicional recai sobre valores econômicos não refletidos
adequadamente no resultado fiscal apurado.
Com essa inovação, a
base tributária sobre dividendos deixa de refletir a renda efetivamente
auferida e passa a incidir sobre patrimônio acumulado e já tributado na
esfera empresarial. Na prática, isso significa que a tributação não ocorre
sobre acréscimos patrimoniais reais, mas sim sobre a simples decisão
empresarial de distribuir lucros, desconsiderando prejuízos fiscais e eventuais
incentivos fiscais conferidos às empresas por políticas públicas específicas
legisladas de forma legítima.
Assim, a retenção
obrigatória de IR sobre dividendos derivados de lucro contábil impede, na
prática, a plena fruição de compensações fiscais, aumentando artificialmente a
carga tributária sobre setores econômicos que dependem especialmente de tais
benefícios. Logo, em vez de promover justiça fiscal, o mecanismo gera uma
tributação distorcida sobre o patrimônio, que não reflete a verdadeira
capacidade contributiva.
Estruturas
patrimoniais como blindagem tributária
Outro ponto
crítico relevante é que o IRPFM falha em sua pretensão de atingir efetivamente
os contribuintes com maiores rendimentos no país. Grandes patrimônios, via de
regra, não distribuem dividendos diretamente para a pessoa física, mas se
organizam por meio de holdings e complexas estruturas jurídicas que permitem a
retenção dos lucros na esfera empresarial, reinvestindo-os continuamente.
Deste modo, a
incidência do IRPFM acaba atingindo com maior intensidade profissionais
liberais, pequenas e médias empresas, ou empresários individuais, que não
possuem mecanismos sofisticados de retenção patrimonial, e que retiram
regularmente os lucros gerados para o sustento próprio e de sua família. A
tributação, portanto, torna-se assimétrica e regressiva, punindo justamente
contribuintes que possuem menor capacidade de planejamento tributário
estruturado.
Na prática, os
contribuintes mais favorecidos economicamente podem, com relativa facilidade,
escapar da tributação mínima, ao passo que contribuintes menos organizados, e
que efetivamente necessitam distribuir lucros para manutenção de seu padrão de
vida, suportam integralmente o impacto dessa nova tributação.
Exigência
constitucional de lei complementar
Por último, porém
não menos importante, é fundamental questionar a constitucionalidade do PL
1087/2025 em virtude da forma como institui a incidência tributária sobre
dividendos. Ao aproximar-se de uma tributação indireta sobre patrimônio
empresarial, o projeto ultrapassa o conceito tradicional de renda, podendo
caracterizar-se como uma nova modalidade tributária não prevista expressamente
pela Constituição.
De acordo com o
artigo 154, inciso I, da Constituição [5], a instituição de novos tributos,
especialmente aqueles que afetam diretamente o patrimônio das pessoas jurídicas
e sua distribuição, requer obrigatoriamente lei complementar específica. O PL
1.087/2025, ao avançar na criação de uma tributação sobre patrimônio já
consolidado nas empresas, aparenta transgredir essa exigência constitucional,
representando potencial violação às limitações ao poder tributário impostas pela
Carta Magna.
Conclusão
Diante dessas
considerações, fica evidente que o mecanismo de tributação mínima dos
dividendos proposto pelo PL 1.087/2025 não assegura, efetivamente, a
concretização dos objetivos de justiça fiscal e progressividade tributária pretendidos
pelo governo. Ao contrário, pode ampliar desigualdades, penalizando
indevidamente pequenos empresários e profissionais liberais, ao mesmo tempo em
que falha em alcançar os maiores patrimônios protegidos por sofisticadas
estruturas empresariais.
Assim, a proposta
legislativa, ao ampliar os contornos tradicionais do conceito de renda e
introduzir um mecanismo de tributação de dividendos baseado no lucro contábil,
suscita controvérsias de ordem constitucional que não podem ser ignoradas. A
aparente tensão com os princípios da legalidade estrita, da capacidade
contributiva e da exigência de lei complementar, além da possiblidade latente
de tributação do patrimônio disfarçada de tributação da renda, exige não apenas
um exame jurídico rigoroso, mas também um debate público transparente.
Diante da relevância
da matéria e da complexidade de seus efeitos econômicos, sociais e federativos,
impõe-se ao Congresso a responsabilidade de conduzir uma deliberação técnica,
plural e cautelosa. A urgência do Executivo, embora compreensível, não pode se
sobrepor à necessidade de assegurar segurança jurídica e justiça fiscal, sob
pena de comprometer a legitimidade e a efetividade da própria política
tributária proposta.
Notas
1 https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2487436
2 § 2º Se, no
caso do § 1º, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal não se manifestarem
sobre a proposição, cada qual sucessivamente, em até quarenta e cinco dias,
sobrestar-se-ão todas as demais deliberações legislativas da respectiva Casa,
com exceção das que tenham prazo constitucional determinado, até que se ultime
a votação.
3 Art. 16-B, §
3º, inc. I, b, e III do PL 1087/2025.
4 Tanto a
legislação societária brasileira, por meio da Lei nº 6.404/1976, quanto as
normas contábeis emitidas pelo CPC e pelo CFC (NBCs e Pronunciamento Técnico
CPC 26), estabelecem que os dividendos devem ser distribuídos com base no lucro
líquido contábil ajustado. Essa prática assegura que a distribuição de lucros
reflita a real situação econômica da companhia, respeitando os princípios
contábeis e legais vigentes.
5 "Art. 154. A
União poderá instituir: I - mediante lei complementar, impostos não previstos
no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador
ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição;"
Autores:
Júlio César Soares é sócio na Advocacia Dias de Souza e
especialista em Direito Tributário.
Márcio Maron é advogado da Advocacia Dias de Souza e
especializando em direito tributário pelo IBET.