O Imposto Sobre
Serviços de Qualquer Natureza (ISS) consiste em tributo de competência
municipal, encontrando-se previsto no inciso III do artigo 156 da
Constituição [1] e disciplinado pela Lei
Complementar nº 116/2003 [2], cujo Anexo Único
estabelece em caráter taxativo o rol de serviços tributáveis [3].
No que alude aos
serviços de saneamento básico, o projeto de lei complementar que resultou na
Lei Complementar nº 116/2003 sugeria a incidência do ISS sobre os serviços de
"saneamento ambiental, inclusive purificação, tratamento, esgotamento sanitário
e congêneres" (item 7.14) e de "tratamento e purificação de água" (item 7.15),
sendo que estes foram vedados por razões de interesse público [4], compreendendo-se naquela ocasião que "a tributação
poderia comprometer o objetivo do Governo em universalizar o acesso a tais
serviços básicos".
A problemática surge
em relação às atividades que se caracterizam como atividade-meio ao serviço de
saneamento básico [5], sem as quais este não
poderia ser executado, a exemplo da realização de obras e serviços de
engenharia para infraestrutura sanitária de forma satisfatória, tais como a
expansão e manutenção da rede coletora de esgoto, as quais devem ser igualmente
abrangidas pela não-incidência do ISS, conforme se explica.
Serviços autônomos
Primeiramente, é
necessário entender que, embora as obras e serviços de engenharia estejam
especificadas no Anexo da Lei Complementar nº 116/2003, é necessário distinguir
entre situações em que esses serviços são autônomos e aquelas em que são
intermediários ou preparatórios para outros serviços.
Por serviços
autônomos, consideram-se aqueles desvinculados de qualquer outra atividade ou
serviço subsequente da dependa destes, a exemplo da construção de pontes e
rodovias, as quais são destinadas ao uso geral e não estão relacionadas a
qualquer outra atividade ou serviço.
Já os serviços
intermediários ou preparatórios são aqueles que se caracterizam como
atividade-meio para possibilitar a execução de serviços mais abrangentes, como
é o caso das obras de infraestrutura sanitária, as quais não possuem uma
utilidade dissociada da atividade-fim para os quais são destinadas.
Nesta última
situação, é fácil compreender que, quando voltadas à infraestrutura sanitária,
determinadas obras e serviços de engenharia consistirão em uma etapa
preparatória ao serviço de saneamento básico, de modo que estes abrangerão
aqueles.
Marco Legal do
Saneamento Básico
Esta percepção foi
incorporada pelo Marco Legal do Saneamento Básico (Lei nº 11.445/2007), a
partir de quando se passou a compreender como "saneamento básico" o "conjunto
de serviços públicos, infraestruturas e instalações operacionais" relacionados
ao "abastecimento de água potável", "esgotamento sanitário", à "limpeza urbana
e manejo de resíduos sólidos" e à "drenagem e manejo das águas pluviais
urbanas" (artigo 3º, inciso I).
Neste sentido, o
Tribunal de Justiça do Estado do Ceará decidiu corretamente que "a execução de
obras de infraestrutura relativa ao serviço de fornecimento de água e esgoto
integra, como dito, o conceito de saneamento básico, estando incluída,
portanto, no texto objeto do veto presidencial, que exclui tal atividade da
incidência de Imposto sobre Serviços" (Processo nº 0043427-85.2015.8.06.0064,
Rel. Des. Francisco de Assis Filgueira Mendes, DJe 13/05/2019).
De forma semelhante,
o Superior Tribunal de Justiça decidiu em mais de uma ocasião acerca da
impossibilidade de incidência do ISS sobre "obras e serviços de saneamento
básico", notadamente considerando que o citado item 7.14 (vetado) engloba os
serviços de "esgotamento sanitário e congêneres", o qual, por sua vez, admite
interpretação extensiva (AgInt no AREsp 1.953.446/RN, Rel. Min. Herman
Benjamin, DJe 12/04/2022).
A doutrina
tributária é uníssona ao estabelecer que "a prestação de serviço tributável
pelo ISS é, pois, entre outras coisas, aquela em que o esforço do prestador
realiza a prestação-fim, que está no centro da relação contratual" (Marcelo
Caron Baptista, em "ISS - Do Texto à Norma", 2005, p. 692), de sorte que o
sujeito ativo do ISS "não se pode decompor um serviço porque previsto, em sua
integridade, no respectivo item específico da lista da lei municipal nas várias
ações-meio que o integram, para pretender tributá-las separadamente,
isoladamente, como se cada uma delas correspondesse a um serviço autônomo,
independente" (Aires Barreto, citação extraída do voto do ministro Luiz Fux no
REsp nº 888.852, DJ de 01/12/2008).
Operações bancárias
Foi nesta esteira de
raciocínio que o STJ decidiu em julgamento memorável que "os serviços de
datilografia, estenografia, secretaria, expediente, etc., prestados pelos
bancos não possuem caráter autônomo, pois inserem-se no elenco das operações
bancárias originárias, executadas de forma acessória, no propósito de
viabilizar o desempenho das atividades-fim inerentes às instituições
financeiras" (RESP n° 69.986/SP, relator ministro Demócrito Reinaldo, DJ de
30.10.1995).
Em temática conexa
com a presente, o STJ reafirmou a sua jurisprudência no sentido de que,
"independente da cobrança pela prestação de serviço, não incide ISS sobre
serviços prestados que caracterizam atividade-meio para atingir atividades-fim,
no caso a exploração de telecomunicações" (2ª Turma, AREsp 2726007 / SP, Rel.
Min. Francisco Falcão, DJEN 21/02/2025).
O Supremo Tribunal
Federal adotou posição semelhante ao considerar "inconstitucional a incidência
do ISS a que se refere o subitem 14.05 da Lista anexa à Lei Complementar nº
116/2003 se o objeto é destinado à industrialização ou à comercialização" (Tema
de Repercussão Geral nº 816 [6]), reconhecendo-se
que as etapas intermediárias do ciclo de produção não sofrem a incidência deste
imposto.
Além de preservar as
hipóteses de incidência do ICMS e do IPI, tais decisões reafirmam que a
tributação de atividades complexas (compostas por mais de uma atividade) se faz
com base na atividade-fim, e não nas atividades-meio, sob pena de
desvirtuamento dos respectivos campos de incidência tributária.
Tributação segregada
dos serviços-meio
Não menos relevante,
é necessário ter em mente que a tributação segregada dos serviços-meio
necessários à execução do serviço-fim do saneamento básico implicaria em
distorcer o veto presidencial aos itens 7.14 e 7.15 do Anexo da Lei
Complementar nº 116/2003, cuja razão ainda é contemporânea, além de estar
alinhada com a meta de universalização estabelecida no Marco Legal do
Saneamento Básico [7], e que faz parte do
compromisso internacional assumido pelo Brasil ao firmar a Agenda ONU
2030 [8].
Com efeito, a
tributação dos serviços-meio não apenas eleva os custos dos investimentos
necessários à expansão e melhoria da rede de saneamento básico, como também
repercute diretamente na tarifa do serviço em razão da necessidade de
manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão,
comprometendo a sua modicidade [9].
Ademais, o aumento
da tributação é fator de influência negativa na atração de investimentos, uma
vez que o aumento das despesas implica na redução do lucro da operação, o que
desestimula investidores que buscam a rentabilidade e, no caso em debate, põe
em risco o cumprimento das metas de universalização dos serviços de saneamento
básico.
Ao que se confere,
além dos aspectos jurídicos-tributários pelos quais se conclui pela não
incidência do ISS sobre obras e serviços de engenharia de infraestrutura
sanitária, é imperativo que os poderes públicos envolvidos considerem ainda a
relevância destes serviços para alcançar as metas de universalização estabelecidos
pelo Marco Legal do Saneamento Básico e pela Agenda ONU 2030 como meios para
promover o desenvolvimento sustentável e a melhoria da qualidade de vida da
população.
[1] Com o
advento da Reforma Tributária (Emenda Constitucional nº 132/2023), o ISS será
substituído pelo Imposto sobre Bens e Serviços em 2033, vigorando até lá um
regime de transição no qual ambos os tributos serão cobrados simultaneamente.
[2] A Lei
Complementar nº 116/2003 se propõe a disciplinar o ISS em substituição ao
Decreto-Lei 406/1968, o qual, todavia, encontra-se parcialmente em vigor.
[3] Tema
296/STF - É taxativa a lista de serviços sujeitos ao ISS a que se refere o art.
156, III, da Constituição Federal, admitindo-se, contudo, a incidência do
tributo sobre as atividades inerentes aos serviços elencados em lei em razão da
interpretação extensiva.
[4] Mesmo sendo
possível o "veto parcial" a uma norma, este necessariamente "abrangerá texto
integral de artigo, de parágrafo, de inciso ou de alínea" (CF, Art. 66, § 2º),
de modo que, por razões técnicas, o item 7 do Anexo à Lei Complementar nº
116/2003 manteve a menção genérica à "Serviços relativos a . meio ambiente,
saneamento e congêneres".
[5] A expressão
"saneamento ambiental", contida no Projeto de Lei Complementar que resultou na
Lei Complementar nº 116/2003, também era empregada no Projeto de Lei nº
1.144/2003 ("Institui a Política Nacional de Saneamento Ambiental, define
diretrizes para a prestação dos serviços públicos de água e esgoto"), que o
definia como "o conjunto de ações socioeconômicas que têm por objetivo alcançar
níveis crescentes de salubridade ambiental, por meio do abastecimento de água
potável, coleta e disposição sanitária de resíduos líquidos, sólidos e gasosos,
promoção de disciplina sanitária do uso e ocupação do solo, drenagem urbana e
controle de vetores e reservatórios de doenças transmissíveis, com a finalidade
de proteger e melhorar as condições de vida, tanto nos centros urbanos quanto
nas comunidades rurais e propriedades rurais mais carentes". Contudo, o
referido Projeto de Lei foi considerado prejudicado e arquivado em razão da
aprovação da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007 (Marco Legal do Saneamento
Básico). Deste modo, é possível afirmar que "saneamento ambiental" e
"saneamento sanitário" são expressões equivalentes.
[6] Neste Tema,
o STF definiu ainda que "2. As multas moratórias instituídas pela União,
Estados, Distrito Federal e municípios devem observar o teto de 20% do débito tributário".
[7] A Lei nº
14.026/2020 alterou o Marco Legal do Saneamento Básico para estabelecer que,
até 31 de dezembro de 2033, 99% da população tenha acesso à água potável e 90%
à coleta e tratamento de esgotos.
[8] "Objetivos
de Desenvolvimento Sustentável. Objetivo 6. Assegurar a disponibilidade e
gestão sustentável da água e saneamento para todas e todos. 6.1 Até 2030,
alcançar o acesso universal e equitativo a água potável e segura para todos.
6.2 Até 2030, alcançar o acesso a saneamento e higiene adequados e equitativos
para todos, e acabar com a defecação a céu aberto, com especial atenção para as
necessidades das mulheres e meninas e daqueles em situação de vulnerabilidade.
6.3 Até 2030, melhorar a qualidade da água, reduzindo a poluição, eliminando
despejo e minimizando a liberação de produtos químicos e materiais perigosos,
reduzindo à metade a proporção de águas residuais não tratadas e aumentando
substancialmente a reciclagem e reutilização segura globalmente [.]".
[9] O princípio
da modicidade tarifária é um princípio setorial inerente ao microssistema
jurídico das concessões públicas, o qual visa garantir que as tarifas dos
serviços públicos sejam fixadas em níveis módicos, de modo a permitir o acesso
universal a estes, especialmente daqueles considerados essenciais. Todavia, as
tarifas devem ser suficientes para cobrir todos os custos operacionais, de
manutenção e investimentos necessários para a prestação de tais serviços, além
de proporcionar uma remuneração justa ao seu prestador, de modo que se assegure
a sustentabilidade financeira dos contratos de concessão com vistas a garantir
a sua continuidade. Neste caminho, o Marco Legal do Saneamento Básico
estabelece que a conciliação entre o equilíbrio econômico-financeiro e a
modicidade tarifária constituem um dos objetivos da Regulação (Art. 22, inc.
IV).
Autor: Fernando Albuquerque, é advogado, atua em
questões relacionadas ao Direito Público, com ênfase em Direito Tributário,
Crimes Tributários, Contratações Públicas, Improbidade Administrativas, Direito
Regulatório e Litígios.