A sociedade limitada
constitui-se como o tipo societário mais utilizado no Brasil, sendo comumente
relacionada como uma sociedade híbrida, ou seja, a depender de suas
características pode ter natureza de "pessoas" ou "de capital".
Motivado por sua
natureza híbrida, o legislador conferiu aos sócios das sociedades limitadas a
possibilidade de optar pela aplicação supletiva da Lei 6.404/1976 (Lei das
S/A), conforme estabelecido no artigo 1.053, parágrafo único, da Lei
10.406/2002 (Código Civil):
"Art. 1.053. A
sociedade limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, pelas normas da
sociedade simples.
Parágrafo único. O
contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade
limitada pelas normas da sociedade anônima." (grifo do articulista)
A expressão regência
supletiva da Lei das S/A sugere uma função complementar, não substitutiva, e
nem alternativa.
Embora pareça uma
regra clara, ainda podem surgir dúvidas práticas sobre a aplicação das normas
da Lei das S/A ou das normas do capítulo das sociedades simples, isso quando
aquela é definida como regramento supletivo e as suas regras se mostram omissas
ou se diferenciam das previstas no Código Civil. Exemplos disso incluem os
casos como a distribuição desproporcional de lucros (artigo 1.007 do Código
Civil) e o direito de retirada imotivada (artigo 1.029 do Código Civil).
Portanto, é
importante entender a aplicabilidade de cada norma de acordo com a natureza de
cada tipo societário, para evitar a criação de uma "sociedade frankenstein",
que adota as regras dos diferentes tipos societários conforme conveniência das
situações práticas.
Distribuição
desproporcional de lucros com regência supletiva da Lei das S/A
Ao analisar a
possibilidade de distribuição desproporcional de lucros - matéria não
disciplinada no capítulo das sociedades limitadas e expressamente proibida pela
Lei das S/A, cujo artigo 109, parágrafo 1º, assegura igualdade entre acionistas
da mesma classe - é fundamental compreender o conceito de supletividade.
A referida
compreensão deve iniciar-se pela análise do entendimento jurisprudencial.
Embora não haja um caso específico tratando diretamente da distribuição
desproporcional de lucros em sociedades limitadas sob a aplicação supletiva da
Lei das S/A, existe precedente envolvendo o exercício do direito de retirada
imotivada. Neste caso, o Superior Tribunal de Justiça determinou que, na
ausência de disposições específicas na Lei das S/A aplicam-se as normas do
Código Civil:
"(.) A ausência de
previsão na Lei n. 6.404/76 acerca da retirada imotivada não implica sua
proibição nas sociedades limitadas regidas supletivamente pelas normas
relativas às sociedades anônimas, especialmente quando o art. 1.089 do CC
determina a aplicação supletiva do próprio Código Civil nas hipóteses de
omissão daquele diploma. (.) (REsp 1.839.078/SP, Relator Ministro Paulo De
Tarso Sanseverin, Terceira Turma, Data do julgamento 09/03/2021, Data da
Publicação 26/03/2021)."
Apesar de não ser o
caso de omissão da Lei das S/A, a qual dispõe que as ações de uma mesma classe
conferirão direitos iguais aos seus titulares, essa limitação não pode
substituir ou contrariar regra do regime jurídico específico da sociedade limitada,
o qual é composto pelo capítulo específico do Código Civil, por seu contrato
social e pelas regras gerais das sociedades simples, conforme explica Paula
Andrea Forgioni [1]:
"(.) a disciplina
das limitadas é composta dos dispositivos específicos, que se complementam
pelas regras gerais das sociedades simples que com eles forem harmonizáveis ou
compatíveis, e (ii) caso seja a vontade das partes, expressa no contrato
social, a sociedade limitada (ou seja, o regramento da sociedade limitada,
composto pelas regras específicas, por seu contrato social e pelas regras
'gerais' das sociedades simples") clama pela disciplina supletiva
(complementar) das sociedades anônimas."
A sociedade limitada
é, portanto, regida por um escalonamento de regras, que deverão ser
rigorosamente observadas, conforme esclarecido por Gustavo Saad Diniz[2]:
"(.) Dessa maneira,
observa-se o seguinte escalonamento para o conjunto de regras desse tipo
societário: (a) regras especiais do modelo, previstas nos arts. 1.052 a 1.087
do CC; (b) regras do contrato social; (c) regras de ordem pública e de direitos
indisponíveis; (d) regras gerais de sociedades simples, aplicáveis como
provedoras do sistema; (e) regras supletivas da LSA, de acordo com a
compatibilidade, se esse for o modelo adotado pelo contrato."
Dessa forma, se o
Código Civil, especificamente o artigo 1.007, permite os sócios estipularem a
distribuição desproporcional de lucros, a Lei das S/A, quando escolhida como
norma de regência supletiva, não poderá contrariar regra daquele ordenamento
jurídico, seja por omissão ou por tratar o assunto de forma diferenciada em
seus dispositivos.
Em consonância as
regras de escalonamento de normas, a Lei das S/A, por lógica, não poderia ser
aplicada de forma alternativa ou substitutiva, conforme demonstrado por Alfredo
de Assis Gonçalves Neto [3]:
"Não é possível que
uma regra da Lei do Anonimato venha a ser aplicada quando há tratamento
específico da matéria nesses dispositivos legais. Ou seja, não pode a sociedade
limitada, por exemplo, promover a convocação de assembleia geral, ou regular o
conselho fiscal, nos moldes previstos na Lei 6.040/1976, quando diverso
daqueles que estão previstos nos dispositivos do Código Civil. O caráter
supletivo das normas da antes referida lei não é alternativo nem substitutivo
do regime próprio a que está sujeita a sociedade limitada."
Portanto, pode-se
concluir que as sociedades limitadas são regidas por um conjunto de normas
específicas, não sendo admitido a aplicação de outras normas de forma
alternativa ou substitutiva, possibilitando a distribuição desproporcional de
lucros, mesmo com a aplicação supletiva da Lei das S/A prevista no contrato
social.
Premissas para a
distribuição desproporcional de lucros
Reconhecendo a
possibilidade da distribuição desproporcional de lucros em sociedades limitadas
regidas supletivamente pela Lei S/A, é fundamental observar certas "premissas"
para evitar futuros questionamentos ou prejuízos aos direitos essenciais dos
sócios, como a participação dos lucros e perdas (artigo 1.008, Código Civil),
norma de ordem pública que não pode ser afastada pela autonomia privada.
A definição da
distribuição desproporcional no contrato social é a premissa essencial para
possibilitar essa prática. Isso se deve ao fato de, além de ser um requisito
legal (artigo 1.007 do Código Civil), os sócios desfrutam de autonomia privada
para prever o referido tipo de regramento, um dos princípios mais importantes e
uma das principais razões pelas quais a sociedade limitada se destaca como o
tipo societário mais escolhido no Brasil.
A segunda premissa é
estabelecer critérios objetivos para a distribuição desproporcional. Isso ajuda
a evitar questionamentos futuros sobre possíveis infrações as normas de ordem
pública, como a mencionada no parágrafo anterior, ou até mesmo a suspeita de
uma doação disfarçada de dividendos, conforme decisões do Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo:
"DECISÃO: (.) Não há
critério definido, objetivo, para a hipótese de distribuição desproporcional
dos lucros, deixando ao arbítrio dos sócios que representam mais da metade do
capital social (.) a escolha pela distribuição desproporcional, sem qualquer
justificativa. Dada a alta litigiosidade entre os litigantes, sem que haja
sequer valor ou percentual mínimo de distribuição de lucros, a atual redação da
Cláusula Sétima "possibilita" aos réus que não distribuam lucros à autora. As
aspas acima se explicam: a redação dá ensejo a essa intenção, mas a lei não
permite. (.) (TJSP. 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. Apelação Cível
1013364-28.2014.8.26.0100. Relator: Ricardo Negrão. Data do Julgamento:
26/06/2020. Data de Registro: 26/06/2020)"
"EMENTA: (.) - ITCMD
DOAÇÃO TRAVESTIDA DE DISTRIBUIÇÃO DESPROPORCIONAL DE DIVIDENDOS IMPOSSIBILIDADE
DE AFASTAMENTO DA TRIBUTAÇÃO REFERENTE À DOAÇÃO Pretensão mandamental voltada a
reconhecer o direito líquido e certo do impetrante de não ser compelido ao
pagamento do ITCMD incidente sobre a distribuição desproporcional de lucros
realizada pela sociedade (.), ou, alternativamente, a redução da multa de 100%
do valor do tributo inadmissibilidade - a doação difere da distribuição
desproporcional de lucros lícita em razão da liberalidade espontânea estar
presente na primeira situação e o propósito negocial na segunda ausente, no
caso, a razão negocial, e presente a liberalidade espontânea, assim considerado
o animus donandi, de modo que a transferência do patrimônio da sociedade para
os sócios (não administradores à época), ainda que com aparência de distribuição
desproporcional de lucros, caracteriza-se como doação (.) (TJSP. 4ª Câmara de
Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n°
1089011-58.2023.8.26.0053. Relator Paulo Barcellos Gatti. Data do
Julgamento: 16/12/2024, Data da Publicação: 28/01/2025)."
A terceira e última
premissa seria a formalização da distribuição desproporcional de lucros. Isso
deve ocorrer através de deliberação e aprovação em uma reunião de sócios,
seguida pela assinatura e registro da respectiva ata. Todo o processo deve
atender aos trâmites e requisitos legais e contratuais, garantindo assim, a
conformidade e a validade das decisões tomadas.
Conclusão
Em resumo, a
aplicação supletiva da Lei das S/A às sociedades limitadas não visa restringir
as regras do capítulo das sociedades limitadas ou das sociedades simples, mas
sim buscar compatibilidade e seguir uma ordem escalonada na aplicação das
normas.
Em outras palavras,
quando o capítulo das sociedades limitadas for omisso em relação a determinado
instituto, será aplicada, na medida da compatibilidade, a previsão do capítulo
das sociedades simples. A Lei das S/A será aplicada supletivamente apenas se
escolhida pelo empresário e desde que o instituto em questão seja compatível
com a estrutura e as normas das sociedades limitadas, sem contrariar ou
substituir o que está estipulado no Código Civil, tanto no capítulo das
sociedades limitadas quanto no das sociedades simples.
Esse é o caso da
distribuição desproporcional de lucros. Embora a Lei das S/A preveja tratamento
igualitário entre acionistas da mesma classe, essa vedação não se harmoniza às
características das sociedades limitadas, nem à lógica da regra de
supletividade das normas.
Autores:
Camila Cortez Cazetta. É advogada em São Paulo do
escritório Galvão Villani, Navarro, Zangiácomo e Bardella Advogados;
Vinicius Amorim Figueredo. É advogado em São Paulo do
escritório Galvão Villani, Navarro, Zangiácomo e Bardella Advogados.