Assim como em outras áreas do saber, vez
por outra o mundo jurídico é invadido por tendências que "viralizam"
nas redes sociais. São instrumentos ou "produtos" jurídicos
divulgados com ares de novidade e de que apenas os seguidores do
"influencer" terão acesso a este conhecimento tão apurado. A moda da
vez, segundo os algoritmos, é a procuração em causa própria, anunciada como
grande solução para transferir bens imóveis aos filhos sem a realização de
inventário e o pagamento de tributos. Certamente, o conteúdo chama atenção.
Afinal, quem já passou pela experiência de realizar inventário de parentes
provavelmente se sentirá atraído por uma alternativa menos burocrática e mais
barata.
Soluções mágicas não existem. É preciso
esclarecer o regime jurídico da procuração em causa própria e elucidar
informações inverídicas ou ao menos incompletas sobre o modo de sua utilização.
Um dos primeiros equívocos de eleger a procuração
em causa própria como solucionadora universal dos planejamentos sucessórios é
crer que o objetivo primordial da família é sempre a economia de custos. Não
raro, a procura pela realização de um planejamento sucessório envolve aspectos
muito mais profundos, tais como a prevenção de litígios entre
cônjuges/companheiros e/ou herdeiros, a distribuição eficiente de bens para que
continuem frutificando, a perpetuação de legados, entre outros. A redução de
despesas é apenas uma faceta do prisma, geralmente a menos importante .
Em segundo lugar, do ponto de vista
técnico, a procuração em causa própria possui peculiaridades que precisam ser
bem consideradas. Como espécie de mandato, diferencia-se do gênero pelo fato de
ser irrevogável, não se extinguir com a morte das partes, dispensar prestação
de contas e permitir que o mandatário transfira para seu nome bens móveis ou
imóveis descritos no instrumento de procuração, respeitadas as formalidades
legais. A seguir, passa-se a cotejar cada uma destas características com as
suas possibilidades de uso lícito em planejamentos sucessórios.
Pelo fato de ser irrevogável, a outorga da
procuração com cláusula "em causa própria" precisa ser fruto de
decisão amadurecida do mandante, uma vez que ele não poderá se arrepender e
desfazer o ato posteriormente. Este instituto é bastante frequente no mercado
imobiliário. Para evitar ter que importunar o vendedor do imóvel ou ficar na
dependência de sua agenda para a assinatura de documentos, uma vez fechado o
negócio de compra e venda, é outorgada procuração com cláusula em causa própria
em favor do comprador, que se responsabiliza pelo registro e demais atos
necessários . No âmbito do planejamento sucessório, é preciso que o outorgante
compreenda que a procuração possui eficácia imediata, de modo que o filho
outorgado não precisará aguardar o óbito do pai ou da mãe para realizar a
transferência. Ainda que possa desvirtuar o propósito dos pais, legalmente é um
direito do descendente outorgado, de modo que todos precisam estar cientes
deste risco. Além disso, o filho poderá substabelecer os poderes para
terceiros, os quais também poderão realizar de imediato a transferência de
bens. Nesse contexto, a doação com usufruto (tanto de bens imóveis quanto de
quotas de pessoa jurídica) parece ser mais oportuna por proteger os pais
doadores.
Sobre a não extinção com a morte das
partes, ainda que o outorgante possa utilizar a procuração, em virtude do
sistema brasileiro de transmissão de propriedade, será necessário lavrar uma
escritura pública de doação, compra e venda, dação em pagamento, confissão de
dívida ou outra que dê causa a esta transferência. Dito em outras palavras: a
procuração em causa própria não possui eficácia translativa . Seu efeito
prático é apenas permitir que um negócio jurídico apto a transferir bens móveis
ou imóveis seja escriturado e depois registrado. Deste modo, é pouco crível que
as partes serão isentas do pagamento de custas e emolumentos da escritura
pública e do registro de imóvel, bem como de ITBI ou ITCMD. Além disso, terão
que explicar na declaração de imposto de renda como ocorreu o ingresso e a
saída de recursos de seu patrimônio, especialmente nos casos em que é exigida
contraprestação.
Nesse sentido, em famílias cujo patrimônio
a ser inventariado é apenas um bem imóvel e/ou bens móveis, sugere-se pesquisar
se há na lei estadual hipóteses de isenção no pagamento do imposto de
transmissão causa mortis, o que de maneira tecnicamente correta já permitiria
economia de custos . Outro alerta importante é o de que mesmo que haja
transferência de todos os bens do falecido pela procuração in rem suam, ainda
sim é aconselhável realizar inventário, mesmo que negativo, para poder encerrar
adequadamente relações societárias, contratos, contas bancárias, dentre outros.
Outra exigência da procuração em causa
própria é a de que os bens objeto do mandato devem ser nela descritos. Logo, no
médio prazo, se os pais tiverem interesse em se desfazer de um ou alguns dos
bens listados, precisarão contar com a anuência do filho para a revogação da
procuração atual e outorga de uma nova, excluindo-se desta última o bem que se
pretende alienar. Ainda, se porventura, o bem que os pais pretendam vender já
tiver sido objeto de outro negócio pelo filho - vez que, como visto, a eficácia
da procuração é imediata - ou se o filho não anuir com o refazimento da
procuração, os pais já não poderão mais decidir sobre o destino do bem.
Precisa-se tomar cuidado para que um ato de
aparente astúcia não gere efeitos contrários aos pretendidos. A utilização da
procuração em causa própria para fraudar lei pode acarretar nulidade, nos
termos do art. 166, VI do Código Civil . Seria o caso, por exemplo, de por meio
da procuração ser lavrada escritura pública de compra e venda, que atrairia a
incidência do ITBI, quando na realidade foi feita doação, devendo ser pago
ITCMD (alíquota em geral superior). Ainda, pode ser inquinada de simulação por
conter declaração/cláusula não verdadeira, conforme art. 167 do Código Civil .
Em ambos os casos, vale lembrar que a nulidade não pode ser confirmada e nem
convalesce com o tempo, podendo ser alegada por qualquer interessado ou pelo
Ministério Público quando lhe couber intervir. Por fim, tais atos poderão ser
questionados pelas receitas estadual e/ou federal, que utilizam ferramentas de
inteligência artificial para coibir fraudes .
Se a procuração em causa própria é um
remédio que pode ser administrado no tratamento do planejamento sucessório, não
se pode descurar que a diferença entre o remédio e o veneno é a dose. A utilização
da procuração em causa própria deve ser feita com prudência, com o
aconselhamento e supervisão de um advogado especializado no tema, que poderá
garantir a legalidade do ato e atento aos riscos que dela poderão advir.
Autores:
Eroulhts
Cortiano Jr. é professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito
pela UFPR. Pós-doutor em Direito pela Universitá di Torino e pela Universitá
Mediterranea di Reggio Calabria. Conselheiro Estadual da OAB/PR.
Secretário-geral do IBDCONT. Advogado em Curitiba/PR.
Flávio
Tartuce é pós-doutor e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito
Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do
mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso
de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD.
Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e
Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do
Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto
Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São
Paulo, parecerista e consultor jurídico.
José
Fernando Simão é professor da USP. Advogado.
Luciana
Pedroso Xavier é professora da Faculdade de Direito da UFPR. Doutora e Mestre
em Direito pela UFPR. Advogada sócia da P.X Advogados.
Marília
Pedroso Xavier é professora da graduação e da pós-graduação stricto sensu da
Faculdade de Direito da UFPR. Doutora em Direito Civil pela USP. Mestre e
graduada em Direito pela UFPR. Coordenadora da Escola Superior de Advocacia da
OAB/PR. Diretora do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCONT.
Mediadora. Advogada do PX ADVOGADOS, com especialidade em Famílias, Sucessões e
Empresas Familiares.
Maurício
Bunazar é mestre, doutor e pós-doutor em Direito Civil pela Faculdade de
Direito do Largo de São Francisco. Diretor executivo e fundador do IBDCONT.
Professor do programa de mestrado da Escola Paulista de Direito. Professor da
Universidade Presbiteriana Mackenzie e do IBMEC-SP.
Fonte:
https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/426335/procuracao-em-causa-propria-nova-panaceia-do-planejamento-sucessorio