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ICMS transferências: A transferência de créditos é obrigatória ou facultativa?


Publicada em 29/08/2025 às 09:00h 

A tributação das operações de transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte é um tema sensível para a iniciativa privada e para a Administração Tributária dos estados.

Mesmo após décadas de litígios, decisões dos tribunais superiores e alterações legislativas substanciais, ainda há muita indefinição a respeito dos procedimentos fiscais que devem ser adotados nessas operações.

A legislação editada após o julgamento da ADC 49 pelo STF não foi redigida com a clareza necessária para definir, com segurança, os procedimentos que devem ser adotados nas diferentes situações proporcionadas pela atividade econômica.

Não fosse o bastante, transcorridos mais de oito meses desde a publicação do convênio ICMS 109/241, alguns estados sequer internalizaram as suas regras, ou atualizaram a sua legislação para adequá-la ao Convênio vigente.

Tudo isso gera uma série de incertezas, que motivaram a elaboração deste artigo, em que analisaremos a obrigatoriedade da transferência de créditos de ICMS em operações interestaduais entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, o que, na nossa visão, representa a principal fonte de indefinição que permeia o assunto.

Retrospecto legislativo e jurisprudencial até a ADC 49

Historicamente, a legislação do ICMS sempre tratou as transferências como operações tributadas2.

Essa abordagem é justificada, essencialmente, por motivos operacionais e de repartição de receitas tributárias no plano federativo. Atribuir às transferências o tratamento de operações tributadas facilitaria a operacionalização do princípio da não cumulatividade do ICMS e reduziria a margem para que os contribuintes "manipulassem" a carga tributária, direcionando débitos ou créditos do imposto ao estado que lhes conviesse.

Contudo, em determinadas hipóteses, a equiparação da transferência a uma operação regularmente tributada também poderia gerar distorções que oneram indevidamente o contribuinte e resultam em ineficiências, como o acúmulo de saldos credores ou a perda da efetividade de benefícios fiscais.

Nesse contexto, contribuintes que se julgavam prejudicados por essa opção legislativa questionaram a legalidade e constitucionalidade das normas que disciplinavam a tributação das transferências pelo ICMS.

A divergência é antiga e foi amplamente debatida nos tribunais superiores, com nítida prevalência do entendimento de que a "circulação física", ou mero deslocamento de mercadoria entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, não configura hipótese de incidência do ICMS3.

As decisões dos tribunais superiores sinalizavam uma posição clara e consolidada, mas não tinham a eficácia geral e vinculante de uma decisão em controle concentrado de constitucionalidade, e não motivaram uma mudança imediata na lei complementar e nas legislações estaduais.

Cenário normativo após a ADC 49

O julgamento da ADC 49 resultou na declaração de inconstitucionalidade de normas da LC 87/1996 que disciplinavam as operações de transferência4 e desencadeou uma série de alterações legislativas.

Em 19/4/2023, ao analisar os embargos de declaração opostos pelo Estado do Rio Grande do Norte, o STF esclareceu que a não incidência do ICMS em operações de transferência não afeta o direito do contribuinte ao aproveitamento de créditos do imposto incidente em etapas anteriores da cadeia produtiva ou comercial, e modulou os efeitos temporais da decisão, que passaria a vigorar a partir de 2024.

Um dos fundamentos que motivaram a modulação foi conferir tempo hábil ao Congresso Nacional, para que alterasse a legislação e disciplinasse a transferência de créditos por parte dos contribuintes. Contudo, houve uma certa demora na resposta do parlamento ao tema, o que levou a administração tributária dos estados a propor uma regulamentação antecipada por meio de convênio celebrado no âmbito do CONFAZ - Conselho Nacional de Política Fazendária.

Em outubro de 2023, foi publicado o convênio ICMS 174/23, que foi rejeitado, por não ter sido ratificado pelo Estado do Rio de Janeiro5.

Apesar da rejeição, em 1/12/2023, o CONFAZ publicou o convênio ICMS 178/23 - praticamente similar ao convênio ICMS 174/23 - que foi ratificado e inspirou a edição de normas específicas por diversos estados.

O convênio ICMS 178/23 propôs que a transferência de créditos seria obrigatória em operações interestaduais entre dois estabelecimentos do mesmo contribuinte e estabeleceu critérios para o cálculo do imposto e o cumprimento de obrigações acessórias. 

Em 29/12/2023, foi publicada a LC 204/23, que estabeleceu a nova disciplina das operações de transferência, incorporada ao art. 12, §§ 4º e 5º da LC 87.

O art. 12, § 4º determina que o estado de destino das mercadorias reconheça o direito aos créditos transferidos, até o limite da aplicação da alíquota interestadual sobre o valor da operação de transferência, e que o estado de origem reconheça o direito aos créditos remanescentes, relativos a operações e prestações anteriores, que não tiverem sido transferidos.

Por sua vez, o art. 12, § 5º da LC 87 autoriza o contribuinte a optar por equiparar as suas operações de transferência a operações regularmente tributadas. A norma foi inicialmente vetada pela Presidência da República, mas está em vigor atualmente, em razão da derrubada do veto pelo Congresso Nacional.

A regulamentação proposta no convênio ICMS 178/23, e internalizada por muitos estados, não era totalmente consistente com a LC 204, pois obrigava o contribuinte a transferir um crédito em valor correspondente ao que seria o limite máximo estabelecido no art. 12, § 4º, inciso I da LC 87 (equivalente a aplicação da alíquota interestadual sobre o valor da operação de transferência). Com a derrubada do veto presidencial ao art. 12, § 5º da LC 87 e a promulgação da norma em junho de 2024, aumentou a pressão para que as regras do convênio ICMS 178/23 fossem revistas, e o convênio ICMS 178/23 foi revogado pelo convênio ICMS 109/24, atualmente vigente.

A Cláusula Primeira do convênio ICMS 109/24 segue a abordagem da LC 204 ao dispor que é assegurado ao contribuinte o direito à transferência de créditos ao estabelecimento destinatário situado em outro estado, mas prevê, em seu parágrafo único, que o estado de origem só é obrigado a assegurar a manutenção de créditos que vierem a exceder o valor que resultar da aplicação da alíquota interestadual sobre o valor atribuído à operação de transferência. Se o contribuinte remetente não transferir o limite máximo do crédito previsto no art. 12, § 4º, inciso I da LC 87, o estado de origem não estaria obrigado a assegurar o crédito que poderia ser transferido, mas não foi.

A Cláusula Quarta, § 1º estabelece o limite máximo do crédito passível de transferência, em linha com o art. 12, § 4º, I da LC 87.

E a Cláusula Sexta, por sua vez, disciplina a opção prevista no art. 12, § 5º da LC 87, de se equiparar a transferência a uma operação regularmente tributada.

De todo modo, a legislação vigente não oferece a segurança e clareza necessárias, e ainda há muita indefinição a respeito da tributação das operações de transferência pelo ICMS.

Transferência de créditos obrigatória ou facultativa

Como já mencionado, a principal indefinição acerca da tributação das operações de transferência é o direito de o contribuinte optar pela transferência de crédito ao estabelecimento destinatário, especialmente em operações interestaduais6. Não se trata da opção por transferir créditos ou equiparar as transferências a uma operação tributada, mas sim, de transferir de forma facultativa ou obrigatória os créditos de ICMS existentes, relativos a operações anteriores, quando for aplicada a disciplina do art. 12, § 4º da LC 87.

É notório que os contribuintes que se insurgiram contra a tributação das transferências tinham o objetivo de não transferir créditos de ICMS ao estabelecimento destinatário, pois, em termos gerais, a transferência de créditos tem efeito similar ou próximo à tributação. O ajuizamento de uma ação para discutir a matéria só seria interessante se a tributação das transferências gerasse um ônus (resultado devedor na apuração do ICMS) no estado de origem e/ou se o estabelecimento destinatário não pudesse aproveitar o crédito do imposto incidente na operação7.

A todo rigor, o resultado prático das decisões judiciais que acolheram o pleito dos contribuintes é equivalente a uma autorização para não transferir créditos, pois se o contribuinte quisesse transferir, bastaria cumprir com a legislação então vigente e tributar as operações.

Ao analisarmos a decisão proferida no julgamento da ADC 498, verificamos que o STF reconheceu que a não incidência do ICMS em operações de transferência não autoriza o estorno do crédito relativo a operações anteriores, mas não afirmou expressamente que o contribuinte pode optar por transferir, ou não, o crédito.

A LC 204, por sua vez, também não é expressa a respeito da natureza facultativa da transferência de créditos. A técnica legislativa utilizada não é a ideal, e a norma comporta interpretações diferentes. É possível interpretar que o art. 12, § 4º, inciso I só estabelece um limite máximo ao valor do crédito a ser transferido, o que permitiria que o contribuinte remetente transfira um crédito em valor menor, ou não transfira crédito. De outro ângulo, também é não é totalmente descabida a interpretação de que a norma determinaria a transferência dos créditos existentes, observando-se o limite máximo mencionado.

E o convênio ICMS 109/24 induz o contribuinte a transferir o crédito em operações interestaduais (ou equiparar a operação de transferência a uma operação regularmente tributada), ao afirmar que o estado de origem é obrigado a assegurar "apenas a diferença positiva" entre os créditos relativos a operações anteriores e o valor resultante da aplicação das alíquotas interestaduais sobre o valor da operação de transferência9.

Atualmente, é praticamente uniforme10 a posição dos estados de que, se houver crédito relativo a operações anteriores, a sua transferência é obrigatória, observados os limites e condições estabelecidos na respectiva legislação.

O que se observa é que as administrações tributárias dos estados vêm defendendo a obrigatoriedade da transferência de créditos em operações interestaduais de forma bastante enérgica. E é compreensível que o façam, pois a atribuição de caráter facultativo a essa medida geraria oportunidades de planejamento tributário aos contribuintes, e permitiria o "direcionamento" de créditos de ICMS ao estabelecimento em que forem aproveitados de forma mais eficiente ou conveniente, o que certamente geraria sérios impactos arrecadatórios.

Essa postura certamente influenciou a redação intrincada da LC 204 e a abordagem inconsistente dos convênios ICMS 178/23 e 109/24, que denotam um esforço para conferir o mínimo possível de margem para que o contribuinte opte pela alocação de créditos de ICMS em um estado ou outro. Em uma análise mais crítica, a redação desses diplomas normativos pode até sugerir uma tentativa de se "contornar" a decisão do STF na ADC 49.

Em que pese a posição dos estados, na nossa leitura, a interpretação de que a transferência de créditos é facultativa é a que melhor se alinha com a ADC 49 e com a LC 204. A redação do art. 12, § 4º, inciso I da LC 87 não determina, mas apenas autoriza, a transferência de créditos, ao passo que o inciso II resguarda o crédito não transferido, independentemente de não ter sido transferido por opção do contribuinte ou por exceder o limite máximo estabelecido no inciso I. E se a LC 204 não impõe a transferência de créditos, não cabe a um convênio do CONFAZ instituir tal restrição.

No contexto do nosso sistema tributário, nos parece razoável que a transferência de créditos de ICMS seja uma medida facultativa, pois, ainda que gere oportunidades de planejamento tributário e de "alocação" de créditos em um estado ou outro, a medida ajudaria a resolver um problema grave de nosso sistema atual, que é o acúmulo de saldos credores de ICMS.

É notório que, por conveniência arrecadatória e administrativa, a legislação do ICMS impõe uma série de ineficiências aos contribuintes, que arcam com o ônus do imposto na aquisição de insumos e mercadorias11, acumulam saldos credores e sofrem os prejuízos financeiros inerentes, pois os estados não implementam mecanismos que permitam a utilização dos créditos e, quando implementam, impõem obstáculos procedimentais e burocráticos que tornam a utilização complexa e morosa.

Sob essa perspectiva, a transferência facultativa de créditos poderia servir como uma ferramenta adicional para evitar o acúmulo de saldos credores e ajudaria a promover um maior equilíbrio na relação entre fisco e contribuinte.

Diversos contribuintes já questionaram a obrigatoriedade da transferência de créditos perante os tribunais judiciais, que deverão definir a questão ao longo dos próximos anos.

1 Convênio publicado em 7/10/2024.

2 Esse tratamento estava previsto no Decreto-lei n. 406/1968, no Convênio ICM n. 66/1988 e na redação original Lei Complementar n. 87/1996.

3 Súmula 166, publicada em 23.8.1996; e Tema Repetitivo n. 259, do Superior Tribunal Justiça; Tema 1.099 da Repercussão Geral ("leading case" ARE 1.255.885/MS) no STF.

4 Art. 11, § 3º, II; parte do art. 12, I; e art. 13, § 4º.

5 A não ratificação do Convênio foi formalizada no Decreto Estadual n. 48.799/2023, e justificada pelo fato de que o Convênio conflitaria com a decisão proferida pelo STF no julgamento da ADC 49 ao prever que a transferência de créditos seria obrigatória.

6 Como o art. 25 da LC 87 autoriza a compensação entre saldos credores e devedores dos estabelecimentos do mesmo titular situados no mesmo estado, em operações internas, o impacto arrecadatório é relativizado e a discussão a respeito da possibilidade de opção pela transferência de créditos se torna menos relevante, tanto que alguns estados, como São Paulo, autorizam expressamente a opção.

7 O que poderia ocorrer se a operação subsequente estiver sujeita a benefício fiscal que impeça o aproveitamento do crédito, por exemplo. 

8 Nos Embargos de Declaração.

9 Ou seja, são preservados apenas os créditos que não puderem ser transferidos em razão do limite previsto no art. 12, § 4º da LC 87.

10 Exemplo de divergência é o Decreto n. 16.568/2025, de Estado de Mato Grosso do Sul, que, ao que consta, permite a transferência facultativa.

11 Incluindo a antecipação do imposto relativo a operações futuras, no regime de substituição tributária.

Autores:

Gabriel Miranda Batisti, Advogado, Mestre em Direito Tributário Internacional (LL.M) pela Universidade da Flórida (EUA), Especialista em Direito Tributário pela FGV/SP.

Rodrigo R. Leite Vieira, Mestre em Direito Tributário pela USP. Ex-Juiz do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (TIT).

Fonte: https://www.migalhas.com.br/depeso/435611/icms-a-transferencia-de-creditos-e-obrigatoria-ou-facultativa








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