A tributação das operações de transferência
de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte é um tema sensível
para a iniciativa privada e para a Administração Tributária dos estados.
Mesmo após décadas de litígios, decisões
dos tribunais superiores e alterações legislativas substanciais, ainda há muita
indefinição a respeito dos procedimentos fiscais que devem ser adotados nessas
operações.
A legislação editada após o julgamento da
ADC 49 pelo STF não foi redigida com a clareza necessária para definir, com
segurança, os procedimentos que devem ser adotados nas diferentes situações
proporcionadas pela atividade econômica.
Não fosse o bastante, transcorridos mais de
oito meses desde a publicação do convênio ICMS 109/241, alguns estados sequer
internalizaram as suas regras, ou atualizaram a sua legislação para adequá-la
ao Convênio vigente.
Tudo isso gera uma série de incertezas, que
motivaram a elaboração deste artigo, em que analisaremos a obrigatoriedade da
transferência de créditos de ICMS em operações interestaduais entre
estabelecimentos do mesmo contribuinte, o que, na nossa visão, representa a
principal fonte de indefinição que permeia o assunto.
Retrospecto legislativo e
jurisprudencial até a ADC 49
Historicamente, a legislação do ICMS sempre
tratou as transferências como operações tributadas2.
Essa abordagem é justificada,
essencialmente, por motivos operacionais e de repartição de receitas
tributárias no plano federativo. Atribuir às transferências o tratamento de
operações tributadas facilitaria a operacionalização do princípio da não
cumulatividade do ICMS e reduziria a margem para que os contribuintes
"manipulassem" a carga tributária, direcionando débitos ou créditos
do imposto ao estado que lhes conviesse.
Contudo, em determinadas hipóteses, a
equiparação da transferência a uma operação regularmente tributada também
poderia gerar distorções que oneram indevidamente o contribuinte e resultam em
ineficiências, como o acúmulo de saldos credores ou a perda da efetividade de
benefícios fiscais.
Nesse contexto, contribuintes que se
julgavam prejudicados por essa opção legislativa questionaram a legalidade e
constitucionalidade das normas que disciplinavam a tributação das
transferências pelo ICMS.
A divergência é antiga e foi amplamente
debatida nos tribunais superiores, com nítida prevalência do entendimento de
que a "circulação física", ou mero deslocamento de mercadoria entre
estabelecimentos do mesmo contribuinte, não configura hipótese de incidência do
ICMS3.
As decisões dos tribunais superiores
sinalizavam uma posição clara e consolidada, mas não tinham a eficácia geral e
vinculante de uma decisão em controle concentrado de constitucionalidade, e não
motivaram uma mudança imediata na lei complementar e nas legislações estaduais.
Cenário normativo após a ADC 49
O julgamento da ADC 49 resultou na
declaração de inconstitucionalidade de normas da LC 87/1996 que disciplinavam
as operações de transferência4 e desencadeou uma série de alterações
legislativas.
Em 19/4/2023, ao analisar os embargos de
declaração opostos pelo Estado do Rio Grande do Norte, o STF esclareceu que a
não incidência do ICMS em operações de transferência não afeta o direito do
contribuinte ao aproveitamento de créditos do imposto incidente em etapas
anteriores da cadeia produtiva ou comercial, e modulou os efeitos temporais da
decisão, que passaria a vigorar a partir de 2024.
Um dos fundamentos que motivaram a
modulação foi conferir tempo hábil ao Congresso Nacional, para que alterasse a
legislação e disciplinasse a transferência de créditos por parte dos
contribuintes. Contudo, houve uma certa demora na resposta do parlamento ao
tema, o que levou a administração tributária dos estados a propor uma
regulamentação antecipada por meio de convênio celebrado no âmbito do CONFAZ -
Conselho Nacional de Política Fazendária.
Em outubro de 2023, foi publicado o
convênio ICMS 174/23, que foi rejeitado, por não ter sido ratificado pelo
Estado do Rio de Janeiro5.
Apesar da rejeição, em 1/12/2023, o CONFAZ
publicou o convênio ICMS 178/23 - praticamente similar ao convênio ICMS 174/23
- que foi ratificado e inspirou a edição de normas específicas por diversos
estados.
O convênio ICMS 178/23 propôs que a
transferência de créditos seria obrigatória em operações
interestaduais entre dois estabelecimentos do mesmo contribuinte e
estabeleceu critérios para o cálculo do imposto e o cumprimento de obrigações
acessórias.
Em 29/12/2023, foi publicada a LC 204/23,
que estabeleceu a nova disciplina das operações de transferência, incorporada
ao art. 12, §§ 4º e 5º da LC 87.
O art. 12, § 4º determina que o estado de
destino das mercadorias reconheça o direito aos créditos transferidos, até o
limite da aplicação da alíquota interestadual sobre o valor da operação de
transferência, e que o estado de origem reconheça o direito aos créditos
remanescentes, relativos a operações e prestações anteriores, que não tiverem
sido transferidos.
Por sua vez, o art. 12, § 5º da LC 87
autoriza o contribuinte a optar por equiparar as suas operações de
transferência a operações regularmente tributadas. A norma foi inicialmente
vetada pela Presidência da República, mas está em vigor atualmente, em razão da
derrubada do veto pelo Congresso Nacional.
A regulamentação proposta no convênio ICMS
178/23, e internalizada por muitos estados, não era totalmente consistente com
a LC 204, pois obrigava o contribuinte a transferir um crédito em valor
correspondente ao que seria o limite máximo estabelecido no art. 12, § 4º,
inciso I da LC 87 (equivalente a aplicação da alíquota interestadual sobre o
valor da operação de transferência). Com a derrubada do veto presidencial ao
art. 12, § 5º da LC 87 e a promulgação da norma em junho de 2024, aumentou a
pressão para que as regras do convênio ICMS 178/23 fossem revistas, e o
convênio ICMS 178/23 foi revogado pelo convênio ICMS 109/24, atualmente
vigente.
A Cláusula Primeira do convênio ICMS 109/24
segue a abordagem da LC 204 ao dispor que é assegurado ao contribuinte o
direito à transferência de créditos ao estabelecimento destinatário
situado em outro estado, mas prevê, em seu parágrafo único, que o estado de
origem só é obrigado a assegurar a manutenção de créditos que vierem a exceder
o valor que resultar da aplicação da alíquota interestadual sobre o valor
atribuído à operação de transferência. Se o contribuinte remetente não
transferir o limite máximo do crédito previsto no art. 12, § 4º, inciso I da LC
87, o estado de origem não estaria obrigado a assegurar o crédito que poderia
ser transferido, mas não foi.
A Cláusula Quarta, § 1º estabelece
o limite máximo do crédito passível de transferência, em linha com o art.
12, § 4º, I da LC 87.
E a Cláusula Sexta, por sua vez, disciplina
a opção prevista no art. 12, § 5º da LC 87, de se equiparar a
transferência a uma operação regularmente tributada.
De todo modo, a legislação vigente não
oferece a segurança e clareza necessárias, e ainda há muita indefinição a
respeito da tributação das operações de transferência pelo ICMS.
Transferência de créditos obrigatória
ou facultativa
Como já mencionado, a principal indefinição
acerca da tributação das operações de transferência é o direito de o
contribuinte optar pela transferência de crédito ao estabelecimento
destinatário, especialmente em operações interestaduais6. Não se trata da opção
por transferir créditos ou equiparar as transferências a uma operação
tributada, mas sim, de transferir de forma facultativa ou obrigatória os
créditos de ICMS existentes, relativos a operações anteriores, quando for
aplicada a disciplina do art. 12, § 4º da LC 87.
É notório que os contribuintes que se
insurgiram contra a tributação das transferências tinham o objetivo de não transferir
créditos de ICMS ao estabelecimento destinatário, pois, em termos gerais, a
transferência de créditos tem efeito similar ou próximo à tributação. O
ajuizamento de uma ação para discutir a matéria só seria interessante se a
tributação das transferências gerasse um ônus (resultado devedor na apuração do
ICMS) no estado de origem e/ou se o estabelecimento destinatário não pudesse
aproveitar o crédito do imposto incidente na operação7.
A todo rigor, o resultado prático das
decisões judiciais que acolheram o pleito dos contribuintes é equivalente a uma
autorização para não transferir créditos, pois se o contribuinte quisesse
transferir, bastaria cumprir com a legislação então vigente e tributar as
operações.
Ao analisarmos a decisão proferida no
julgamento da ADC 498, verificamos que o STF reconheceu que a não incidência do
ICMS em operações de transferência não autoriza o estorno do crédito relativo a
operações anteriores, mas não afirmou expressamente que o contribuinte
pode optar por transferir, ou não, o crédito.
A LC 204, por sua vez, também não é
expressa a respeito da natureza facultativa da transferência de créditos. A
técnica legislativa utilizada não é a ideal, e a norma comporta interpretações
diferentes. É possível interpretar que o art. 12, § 4º, inciso I só estabelece
um limite máximo ao valor do crédito a ser transferido, o que permitiria que o
contribuinte remetente transfira um crédito em valor menor, ou não transfira
crédito. De outro ângulo, também é não é totalmente descabida a interpretação
de que a norma determinaria a transferência dos créditos existentes,
observando-se o limite máximo mencionado.
E o convênio ICMS 109/24 induz o
contribuinte a transferir o crédito em operações interestaduais (ou equiparar a
operação de transferência a uma operação regularmente tributada), ao afirmar
que o estado de origem é obrigado a assegurar "apenas a diferença
positiva" entre os créditos relativos a operações anteriores e o valor
resultante da aplicação das alíquotas interestaduais sobre o valor da operação
de transferência9.
Atualmente, é praticamente uniforme10 a
posição dos estados de que, se houver crédito relativo a operações anteriores,
a sua transferência é obrigatória, observados os limites e condições
estabelecidos na respectiva legislação.
O que se observa é que as administrações
tributárias dos estados vêm defendendo a obrigatoriedade da transferência de
créditos em operações interestaduais de forma bastante enérgica. E é
compreensível que o façam, pois a atribuição de caráter facultativo a essa
medida geraria oportunidades de planejamento tributário aos contribuintes, e
permitiria o "direcionamento" de créditos de ICMS ao estabelecimento
em que forem aproveitados de forma mais eficiente ou conveniente, o que
certamente geraria sérios impactos arrecadatórios.
Essa postura certamente influenciou a
redação intrincada da LC 204 e a abordagem inconsistente dos convênios ICMS
178/23 e 109/24, que denotam um esforço para conferir o mínimo possível de
margem para que o contribuinte opte pela alocação de créditos de ICMS em um
estado ou outro. Em uma análise mais crítica, a redação desses diplomas
normativos pode até sugerir uma tentativa de se "contornar" a decisão
do STF na ADC 49.
Em que pese a posição dos estados, na nossa
leitura, a interpretação de que a transferência de créditos é facultativa é a
que melhor se alinha com a ADC 49 e com a LC 204. A redação do art. 12, § 4º,
inciso I da LC 87 não determina, mas apenas autoriza, a transferência de
créditos, ao passo que o inciso II resguarda o crédito não transferido,
independentemente de não ter sido transferido por opção do contribuinte ou por
exceder o limite máximo estabelecido no inciso I. E se a LC 204 não impõe a
transferência de créditos, não cabe a um convênio do CONFAZ instituir tal
restrição.
No contexto do nosso sistema tributário,
nos parece razoável que a transferência de créditos de ICMS seja uma medida
facultativa, pois, ainda que gere oportunidades de planejamento tributário e de
"alocação" de créditos em um estado ou outro, a medida ajudaria a
resolver um problema grave de nosso sistema atual, que é o acúmulo de saldos
credores de ICMS.
É notório que, por conveniência
arrecadatória e administrativa, a legislação do ICMS impõe uma série de
ineficiências aos contribuintes, que arcam com o ônus do imposto na aquisição
de insumos e mercadorias11, acumulam saldos credores e sofrem os prejuízos
financeiros inerentes, pois os estados não implementam mecanismos que permitam
a utilização dos créditos e, quando implementam, impõem obstáculos
procedimentais e burocráticos que tornam a utilização complexa e morosa.
Sob essa perspectiva, a transferência
facultativa de créditos poderia servir como uma ferramenta adicional para
evitar o acúmulo de saldos credores e ajudaria a promover um maior equilíbrio
na relação entre fisco e contribuinte.
Diversos contribuintes já questionaram a
obrigatoriedade da transferência de créditos perante os tribunais judiciais,
que deverão definir a questão ao longo dos próximos anos.
1 Convênio publicado em 7/10/2024.
2 Esse tratamento estava previsto no
Decreto-lei n. 406/1968, no Convênio ICM n. 66/1988 e na redação original Lei
Complementar n. 87/1996.
3 Súmula 166, publicada em 23.8.1996;
e Tema Repetitivo n. 259, do Superior Tribunal Justiça; Tema 1.099 da
Repercussão Geral ("leading case" ARE 1.255.885/MS) no STF.
4 Art. 11, § 3º, II; parte do art. 12,
I; e art. 13, § 4º.
5 A não ratificação do Convênio foi
formalizada no Decreto Estadual n. 48.799/2023, e justificada pelo fato de que
o Convênio conflitaria com a decisão proferida pelo STF no julgamento da ADC 49
ao prever que a transferência de créditos seria obrigatória.
6 Como o art. 25 da LC 87 autoriza a
compensação entre saldos credores e devedores dos estabelecimentos do mesmo
titular situados no mesmo estado, em operações internas, o impacto
arrecadatório é relativizado e a discussão a respeito da possibilidade de opção
pela transferência de créditos se torna menos relevante, tanto que alguns
estados, como São Paulo, autorizam expressamente a opção.
7 O que poderia ocorrer se a operação
subsequente estiver sujeita a benefício fiscal que impeça o aproveitamento do
crédito, por exemplo.
8 Nos Embargos de Declaração.
9 Ou seja, são preservados apenas os
créditos que não puderem ser transferidos em razão do limite previsto no art.
12, § 4º da LC 87.
10 Exemplo de divergência é o Decreto
n. 16.568/2025, de Estado de Mato Grosso do Sul, que, ao que consta, permite a
transferência facultativa.
11 Incluindo a antecipação do imposto
relativo a operações futuras, no regime de substituição tributária.
Autores:
Gabriel
Miranda Batisti, Advogado, Mestre em Direito Tributário Internacional (LL.M)
pela Universidade da Flórida (EUA), Especialista em Direito Tributário pela
FGV/SP.
Rodrigo
R. Leite Vieira, Mestre em Direito Tributário pela USP. Ex-Juiz do Tribunal de
Impostos e Taxas de São Paulo (TIT).
Fonte:
https://www.migalhas.com.br/depeso/435611/icms-a-transferencia-de-creditos-e-obrigatoria-ou-facultativa