Com a sanção
presidencial do PLP nº 68/2024 na metade de janeiro, todos os holofotes das
discussões acerca da reforma tributária passaram a recair sobre esse diploma
legal, que regulamenta a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), o Imposto
sobre Bens e Serviços (IBS) e o Imposto Seletivo (IS).
Igualmente importante,
contudo, é o PLP nº 108/2024, aprovado pela Câmara de Deputados no final do ano
e atualmente na pauta do Senado.
Esse projeto de lei
complementar possui disposições de especial relevância para os planejamentos
patrimoniais e sucessórios país a fora, visto que objetiva criar nova regra
para o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de quaisquer bens ou
Direitos.
O ITCMD é o imposto
que tributa as doações e heranças no Brasil. Atualmente, o imposto é
regulamentado pela legislação de cada estado, que possuía certa
discricionariedade para definir questões como alíquotas e bases de cálculo,
desde que respeitados os tetos federais.
Caso aprovado no
Senado, o PLP poderá ensejar a unificação de algumas questões tributárias no
que tange ao ITCMD. Dentre elas, e de especial relevância para o presente
artigo, é a normativa sobre a base de cálculo do imposto de quotas ou ações de
pessoas jurídicas de capital fechado.
É prática
corriqueira no ambiente empresarial brasileiro a consolidação do patrimônio, mobiliário
e imobiliário, em estruturas denominadas holdings patrimoniais. Por meio dessas
estruturas, todo o patrimônio da entidade familiar é concentrado em uma pessoa
jurídica, de modo que as velhas gerações transmitem às novas não o patrimônio
de forma direta, mas sim as cotas ou ações desse tipo de empresa.
Para valorar essas
cotas e ações, até então, os fiscos estaduais utilizavam de diferentes métodos.
A jurisprudência do estado de São Paulo [1], por
exemplo, permite que o contribuinte recolha o ITCMD com base no patrimônio
contábil da sociedade, constante em balanço patrimonial.
Santa Catarina, por
sua vez, permite que o imposto seja calculado sobre o valor patrimonial líquido
contante em balanço, desde que atualizado à data de abertura da sucessão [2].
Ambas as hipóteses,
naturalmente, refletiam um valor descontado em relação ao real valor de
negociação desses títulos.
Agora, com a reforma
tributária, a situação poderá mudar de figura caso aprovado o PLP. O artigo
175, II do PLP nº 108/2024 estabelece a seguinte regra para valorar as quotas e
ações de sociedades de capital fechado, para fins de ITCMD:
"Art. 175. No caso
de quotas ou ações de emissão de pessoas jurídicas ou no caso de empresário
individual, a base de cálculo do ITCMD será determinada de acordo com as
seguintes regras:
II - nos demais casos, a base de cálculo deverá ser calculada com metodologia
tecnicamente idônea e adequada às quotas ou ações, inclusive o método técnico
que contemple eventual perspectiva de geração de caixa do empreendimento, e
deverá o valor corresponder, no mínimo, ao patrimônio líquido ajustado pela
avaliação de ativos e passivos a valor de mercado, acrescido do valor de
mercado do fundo de comércio, conforme estabelecido na legislação do ente
tributante."
Não se está agora
lidando simplesmente com o valor nominal ou de mercado das quotas e ações. Pelo
contrário. A reforma tributária está concedendo aos Fiscos estaduais um
verdadeiro poder de realizar um valuation aprofundado das empresas,
utilizando-se de técnicas de valoração bastante complexas, que podem abranger
questões como perspectiva de geração de caixa e apreciação do fundo de
comércio.
O fundo de comércio
corresponde ao conjunto de bens imateriais que agregam valor a uma empresa,
tais como clientela, reputação, localização privilegiada, marcas e patentes.
Trata-se de um elemento altamente subjetivo e variável, cuja mensuração envolve
considerável grau de incerteza. Ao incluir o valor de mercado do fundo de
comércio como critério obrigatório na base de cálculo do ITCMD, o PLP nº
108/2024 amplia ainda mais a margem de subjetividade na valoração das cotas e
ações, abrindo espaço para disputas entre contribuintes e a Fazenda Pública.
Possíveis
divergências na base de cálculo
Outro ponto sensível
é a ausência de um método padronizado para o valuation, que pode levar a
divergências significativas na base de cálculo do ITCMD. Isso porque diferentes
métodos de valuation podem gerar resultados distintos para uma mesma
empresa, mesmo quando analisada no mesmo contexto fático, o que evidencia o
alto grau de subjetividade que pode ser introduzido na determinação da base de
cálculo do imposto.
O Fluxo de Caixa
Descontado (FCD), por exemplo, projeta os lucros futuros da empresa e os traz a
valor presente utilizando uma taxa de desconto baseada no risco do negócio.
Esse método, apesar de amplamente utilizado no mercado financeiro, é altamente
sensível a variações na projeção de receitas e nos parâmetros de risco, podendo
resultar em valorações significativamente divergentes a depender das premissas
adotadas.
Já o Valor
Patrimonial Líquido (VPL) foca exclusivamente nos ativos e passivos registrados
no balanço contábil, desconsiderando a capacidade da empresa de gerar receitas
futuras. Isso pode levar a avaliações consideravelmente inferiores ao valor de
mercado da empresa, especialmente em negócios que detêm ativos intangíveis de
grande valor.
O método dos
múltiplos de mercado, por sua vez, compara a empresa com outras do mesmo setor,
utilizando indicadores como Ebitda ou faturamento. Apesar de fornecer um
parâmetro de valoração baseado em referências externas, esse método é altamente
dependente da amostra de comparação e das condições macroeconômicas vigentes, o
que pode gerar resultados díspares mesmo para empresas com características
similares.
A escolha do método
pelo Fisco pode, portanto, impactar diretamente a carga tributária incidente
sobre a sucessão patrimonial. Dependendo do critério adotado, uma mesma empresa
pode ser avaliada em valores substancialmente distintos.
O que o PLP nº
108/2024 propõe, na prática, é criar para o Fisco uma ferramenta semelhante à
já conhecida apuração de haveres no âmbito do Poder Judiciário. Os processos de
apuração de haveres decorrem de disputas entre sócios ou acionistas, geralmente
em razão da retirada de um deles do quadro societário, por exclusão, retirada
voluntária ou falecimento.
Nesses casos,
torna-se necessária a definição do valor real da participação do sócio
retirante para que ele ou seus sucessores recebam a devida compensação
financeira.
A complexidade
desses processos reside na determinação do valor justo da empresa, que pode
variar substancialmente conforme o método de valuation adotado, as
premissas consideradas e a subjetividade inerente à avaliação de ativos
intangíveis.
Ao permitir que os
fiscos estaduais adotem métodos complexos e subjetivos para definir o valor das
quotas e ações de empresas, o PLP nº 108/2024 cria um cenário propício para
disputas infindáveis entre contribuintes e a administração tributária. Empresas
e herdeiros poderão se ver em situações nas quais precisarão contestar
avaliações arbitrárias ou inflacionadas, tal como ocorre em litígios judiciais
sobre apuração de haveres.
Ou seja, o caminho
trilhado pelo legislador é o de uma tributação que carrega consigo a promessa
de litígio prolongado. Se no ambiente societário a apuração de haveres já é um
problema crônico no Judiciário, o mesmo poderá ocorrer na esfera tributária,
tornando o planejamento sucessório ainda mais desafiador e imprevisível.
Além disso, as
mudanças propostas pelo PLP nº 108/2024 impactam diretamente as empresas
familiares, que representam uma parcela significativa da economia brasileira.
Segundo estudo da PwC, 75% das empresas familiares no Brasil não sobrevivem à
segunda geração, em parte devido às dificuldades de sucessão e à carga
tributária incidente sobre transmissões patrimoniais.
Com a possibilidade
de valuation inflacionado, os herdeiros podem enfrentar dificuldades
para pagar o ITCMD, especialmente se os ativos herdados forem ilíquidos. Isso
pode forçar a venda de participações societárias, prejudicando a continuidade
dos empreendimentos familiares e desestimulando a sucessão empresarial.
Ademais, a incerteza
sobre os critérios de valoração pode aumentar a litigiosidade entre
contribuintes e a Administração Tributária. Isso representa um entrave
adicional ao ambiente de negócios, podendo desestimular investimentos e afetar
a competitividade das empresas nacionais.
Ameaça à
previsibilidade
O PLP nº 108/2024
representa uma ameaça real à previsibilidade e à segurança jurídica no campo
tributário, uma vez que possibilita avaliações subjetivas e métodos variáveis
na valoração de quotas e ações, permitindo que o Fisco defina critérios
distintos para casos semelhantes. Tal falta de uniformidade afronta diretamente
o princípio da capacidade contributiva, pois a definição arbitrária da base de
cálculo pode impor encargos fiscais desproporcionais à realidade econômica do
contribuinte.
Ademais, a
tributação excessiva e a insegurança jurídica resultantes dessa proposta
colocam em risco valores fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro, como
a livre iniciativa e a estabilidade das empresas familiares. O princípio da preservação
da empresa, embora tradicionalmente aplicado no direito empresarial e
falimentar, guarda relação direta com o contexto aqui tratado, pois a
continuidade das atividades empresariais pode ser comprometida pelo impacto
financeiro da imposição fiscal elevada, inviabilizando a perpetuação dos
negócios e sua função social.
Portanto, espera-se
que o Senado promova ajustes substanciais no texto do PLP nº 108/2024,
estabelecendo critérios objetivos para a valoração de ativos. Caso contrário, a
nova sistemática poderá não apenas aumentar os litígios tributários, mas também
comprometer a viabilidade econômica das empresas familiares, resultando em
consequências negativas para o ambiente de negócios e para a economia como um
todo.
[1] TJ-SP;
Apelação / Remessa Necessária 1013127-23.2023.8.26.0053; Relator (a):
Vicente de Abreu Amadei; Órgão Julgador: 1ª Câmara de Direito Público; Foro
Central - Fazenda Pública/Acidentes - 10ª Vara de Fazenda Pública; Data do
Julgamento: 28/01/2025; Data de Registro: 28/01/2025
[2] Art. 6, §
4º do RITCMD: O valor das ações, quotas, participações ou de quaisquer títulos
representativos do capital social de sociedades empresárias, sociedades simples
ou do patrimônio de empresário ou da empresa individual de responsabilidade
limitada, não negociados em bolsa, será o valor do patrimônio líquido ajustado
pela reavaliação dos ativos e passivos ao valor de mercado na data do envio da
DIEF-ITCMD
Autores:
Gabriel Gonçalves Masiero, é advogado, sócio do
escritório Preve, Masiero e Da Veiga Advogados Associados, graduado em Direito
pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), associado ao Instituto de
Direito de Recuperação de Empresas (Idre) e pós-graduando em Direito Societário
e Mercado de Capitais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio).
Thiago da Veiga Ferreira, é advogado, sócio do
escritório Preve, Masiero e Da Veiga Advogados Associados, graduado em Direito
pela Universidade Federal de Santa Catarina e pós-graduando em Direito
Tributário pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.