O artigo analisa
os efeitos da lei 14.451/22 sobre os contratos sociais, com foco na manutenção
de cláusulas que prevejam quóruns qualificados para deliberações societárias.
Introdução
A lei 14.451/22, em vigor desde 22 de
outubro de 2022, alterou substancialmente o regime de quóruns deliberativos nas
sociedades limitadas, promovendo a redução das exigências legais para
deliberações societárias. A norma teve como objetivo conferir maior
flexibilidade à gestão dessas sociedades, alinhando-as à sistemática das
sociedades anônimas e incentivando práticas de governança mais dinâmicas.
Antes da entrada em vigor da nova norma, o
art. 1.076, inciso I, do CC exigia quórum qualificado de 3/4 do capital social
para a aprovação de: (a) modificações do contrato social; e (b) operações de
reorganização societária, como incorporação, fusão, dissolução e cessação do
estado de liquidação da sociedade. O art. 1.061, por sua vez, estabelecia a
necessidade de unanimidade dos sócios para a nomeação de administrador não
sócio, quando o capital ainda não estivesse integralizado, e de 2/3 após a
integralização total.
Com a alteração legislativa, a alteração de
contrato social e a aprovação de transações societárias passaram ser submetidas
ao quórum de maioria absoluta; isto é, mais da metade do capital social. Já a
designação de administradores não sócios passaram a depender de deliberação de
ao menos 2/3 dos sócios, na hipótese de capital não integralizado, e maioria do
capital social, após a integralização.
Contudo, a mudança legal suscitou
controvérsias relevantes na esfera prática: como interpretar contratos sociais
anteriores à nova lei que estipulam quóruns mais qualificados? Prevalece a nova
regra legal, ou deve ser respeitada a pactuação contratual anterior?
Este artigo analisa a questão à luz da
recente decisão proferida no processo administrativo 14022.048117/2024-14,
proferida pela SMEPP - Secretaria Nacional de Microempresa e Empresa de Pequeno
Porte, em sede de recurso hierárquico.
Processo administrativo
14022.048117/2024-14
O conflito teve origem na sociedade J.
Demito Administração e Participações Ltda., composta por cinco sócias. Em 2022,
foi aprovada a Oitava Alteração Contratual, que tratava de temas sensíveis como
quórum deliberativo e administração da sociedade. A alteração foi registrada
com base em deliberação de sócias detentoras de apenas 55% do capital social,
contrariando cláusula contratual anterior (cláusula 35ª) que exigia quórum de
3/4 (75%) para alterações dessa natureza.
A sócia minoritária Baggio Participações
Ltda., com 45% do capital, impugnou o arquivamento junto à JUCETINS - Junta
Comercial do Estado do Tocantins, que determinou o cancelamento do registro. Em
recurso ao DREI - Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração, a
decisão foi reformada, sob o fundamento de que a lei 14.451/22 teria prevalência
sobre o contrato anterior, e que a nova redação legal teria automaticamente
substituído o quórum qualificado pela maioria absoluta do capital social.
Além disso, a decisão do DREI sustentou
haver contradição interna no contrato social, pois, embora a cláusula 35ª
previsse expressamente o quórum de 3/4, a cláusula 2ª remetia à regência da
sociedade pelas disposições do CC, o que indicaria a aplicação da nova
legislação.
Contudo, em sede de recurso hierárquico, o
entendimento do DREI foi reformado pela SMEPP - Secretaria Nacional de
Microempresa e Empresa de Pequeno Porte, que reconheceu a validade da cláusula
contratual que estipulava o quórum qualificado, considerando-a compatível com o
novo regime legal e, portanto, afastando a eficácia da Oitava Alteração
Contratual.
A decisão da SMEPP se baseou em dois
pilares fundamentais:
1. Autonomia privada e ato jurídico
perfeito
A cláusula que previa quórum qualificado
foi pactuada expressamente pelas sócias e deveria ser respeitada nos termos do
princípio da autonomia da vontade (art. 421 do CC) e da proteção ao ato
jurídico perfeito (art. 2.035, §1º do CC). A superveniência da lei 14.451/22
não revoga automaticamente disposições contratuais preexistentes, especialmente
em se tratando de normas de caráter supletivo e dispositivo.
2. Limites da atuação registral e
necessidade de judicialização de conflitos societários
A decisão também reafirmou os limites da
atuação das Juntas Comerciais e do DREI, que não possuem competência para
interpretar cláusulas contratuais em conflito, tampouco para resolver litígios
entre sócios, os quais devem ser submetidos ao Poder Judiciário. Eventuais
divergências sobre o alcance da nova legislação em relação a pactos societários
anteriores exigem debate jurisdicional, e não podem ser resolvidas
unilateralmente em instância administrativa.
Conclusão
A decisão proferida no processo
14022.048117/2024-14 oferece um importante precedente administrativo ao
reafirmar a força normativa dos contratos sociais e a prevalência da autonomia
privada nas sociedades limitadas, mesmo diante de alterações legislativas
supervenientes. Trata-se de interpretação coerente com os princípios da
segurança jurídica, da estabilidade das relações contratuais e da liberdade de
organização interna das sociedades empresárias.
Ao preservar o quórum qualificado previsto
contratualmente, reconhece-se que o novo regime introduzido pela lei 14.451/22
é facultativo e supletivo, e não pode ser utilizado como instrumento de
alteração unilateral de acordos societários legítimos, em detrimento de sócios
que confiaram na estrutura anteriormente pactuada.
A imposição de um novo regime de
deliberação sem o consentimento das partes violaria expectativas legítimas e
desequilibraria as relações de poder previamente estabelecidas entre os sócios.
A cláusula de quórum qualificado, ainda que anteriormente coincidente com o
mínimo legal, foi deliberadamente mantida, e sua desconsideração acarretaria
grave insegurança jurídica, sobretudo para os minoritários.
Autores:
Lucas
F. G. Bento. Sócio das áreas de Societário e Mercado de Capitais do TN
Advogados. Advogado e estudante de Finanças e Negócios pela USP, com passagens
pela University of Illinois e University of Chicago, ambas nos EUA.
João
Vitor Calabuig Chapina Ohara. Associado da área de Societário e Mercado de
Capitais do TN Advogados. Advogado, mestrando e bacharel pela FDRP-USP,
pós-graduado em direito societário pela Fundação Getúlio Vargas - FGV Law.
Fonte:
https://www.migalhas.com.br/depeso/439439/efeitos-da-lei-14-451-22-sobre-contratos-sociais-preexistentes