Nesta semana,
trataremos dos precedentes do Carf acerca da tributação de criptoativos.
Em primeiro lugar,
cumpre ressaltar que a crise econômica de 2008 foi um dos principais marcos do
capitalismo contemporâneo, gerando consequências nas estruturas
político-jurídicas da sociedade, em especial no sistema financeiro global [1].
Este foi o cenário
em que houve a publicação de um "white paper" denominado "Bitcoin: a
peer-to-peer cash system", no qual Satoshi Nakamoto [2] descreveu
os conceitos básicos das criptomoedas e de seu funcionamento por meio de um
sistema operacional denominado "Blockchain".
As criptomoedas
podem ser consideradas ativos, passíveis de utilização como meio de troca em
alguns estabelecimentos, além de poderem ser contabilizados de forma unitária e
serem negociados e transferidos por meio da tecnologia "blockchain" [3].
Ao tratar do
assunto, o Fundo Monetário Internacional elegeu cinco características para as
criptomoedas: (i) são moedas virtuais que representam valores digitas; (ii) não
possuem curso forçado; (iii) são passíveis de conversão em bens e serviços e
até mesmo moedas oficiais; (iv) são "descentralizadas", pois não estão ligadas
a uma autoridade central; e (v) fazem uso de tecnologia criptografada para
validação [4] .bit
Ainda que as
negociações com criptomoedas tenham ganhado cada vez mais relevância ao longo
dos últimos anos, são ainda poucos os acórdãos do Carf em que haja menção
expressa aos criptoativos, de forma que o presente artigo tratará exatamente
destes primeiros precedentes sobre o tema.
Regulamentação
tributária
Diante da crescente
importância das criptomoedas na segunda metade da década passada, a Receita
Federal inaugurou uma menção às moedas virtuais nas Perguntas e Respostas do
Imposto de Renda da Pessoa Física relativas ao ano de 2015 ao dispor que "as moedas
virtuais (bitcoins, por exemplo), muito embora não sejam consideradas como
moeda nos termos do marco regulatório atual, devem ser declaradas na Ficha Bens
e Direitos como 'outros bens', uma vez que podem ser equiparadas a um ativo
financeiro. Elas devem ser declaradas pelo valor de aquisição".
Também houve a
menção de que: "os ganhos obtidos com a alienação de moedas virtuais (bitcoins,
por exemplo) cujo total alienado no mês seja superior a R$ 35 mil são
tributados, a título de ganho de capital, à alíquota de 15%, e o recolhimento
do imposto sobre a renda deve ser feito até o último dia útil do mês seguinte
ao da transação". A partir da Lei nº 13.259/16, as alíquotas do IRPF sobre
ganho de capital passaram a ser progressivas de acordo com o tamanho do ganho
de capital.
Anos depois, foi
publicada a Instrução Normativa RFB nº 1.888/19, que instituiu a
obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações realizadas
com criptoativos à RFB.
Nos termos do artigo
5º, I, da referida instrução normativa, criptoativo é a representação digital
de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser
expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente
com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos,
que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência
de valores ou acesso a serviços, e que não constitui moeda de curso legal.
Por sua vez, o
artigo 5º, II, da referida norma define a exchange de criptoativo como
a pessoa jurídica, ainda que não financeira, que oferece serviços referentes a
operações realizadas com criptoativos, inclusive intermediação, negociação ou
custódia, e que pode aceitar quaisquer meios de pagamento, inclusive outros
criptoativos.
Indo para a
regulamentação atual sobre o tema, vale destacar que nos termos das Perguntas e
Respostas relativas ao Imposto de Renda da Pessoa Física do ano de 2024, os
criptoativos não são considerados moeda de curso legal nos termos do marco
regulatório atual, no entanto, podem ser equiparados a ativos sujeitos a ganho
de capital e devem ser declarados pelo valor de aquisição na Ficha Bens e
Direitos (Grupo 08 - Criptoativos), quando o valor de aquisição de cada tipo de
criptoativo for igual ou superior a R$ 5 mil.
Com relação à
tributação, consta nas Perguntas e Respostas relativas ao Imposto de Renda da
Pessoa Física do ano de 2024 que: "os ganhos obtidos com a alienação de
criptoativos cujo total alienado no mês seja superior a R$ 35 mil são
tributados, a título de ganho de capital, segundo alíquotas progressivas
estabelecidas em função do lucro, e o recolhimento do imposto sobre a renda
deve ser feito até o último dia útil do mês seguinte ao da transação, no código
de receita 4600".
É importante ainda a
menção de que "o contribuinte deverá guardar documentação que comprove a
autenticidade das operações de aquisição e de alienação, além de prestar
informações relativas às operações com criptoativos, por meio da utilização do
sistema Coleta Nacional, disponível no e-CAC, quando as operações não forem
realizadas em Exchange ou quando realizadas em Exchange domiciliada no
exterior, nos termos da Instrução Normativa RFB nº 1.888, de 3 de maio de
2019".
Tais entendimentos
estão de acordo com a Solução de Consulta Cosit nº 214/21.
Precedentes do Carf
Feitas as principais
considerações sobre a regulamentação tributária do assunto, passaremos à
análise dos precedentes do Carf.
No Acórdão
2102-003.523 [5] (de 07/11/24), a turma
decidiu de forma unânime pela caracterização como acréscimo patrimonial a
descoberto os montantes relacionados com operações com criptoativos para os
quais não houve apresentação de documentos comprobatórios de origem dos
recursos.
A fiscalização teve
início com intimação para que o contribuinte apresentasse seus documentos
financeiros, informes de rendimentos e movimentações bancárias, sendo que em um
momento posterior houve também a intimação da Exchange para apresentação das
transações envolvendo aquele contribuinte.
Como resultado da
fiscalização e do entendimento por parte das autoridades fiscais que haveria
omissões na Declaração de Ajuste Anual especialmente quanto aos ganhos de
capital relacionados com criptoativos, houve a lavratura de um auto de infração
de acréscimo patrimonial a descoberto.
As autoridades
fiscais assinalaram que a propriedade de criptoativos deveria ser declarada
como bens e direitos na Declaração de Ajuste Anual do Imposto de Renda de
Pessoa Física (Dirpf), nos termos da então vigente Instrução Normativa RFB nº
1888/2019, que disciplina a obrigatoriedade de prestação de informações
relativas às operações realizadas com criptoativos, sendo que no caso concreto
houve falta de respostas adequadas às intimações.
Em sua impugnação e
em seu recurso voluntário, o contribuinte alegou que os ganhos de capital com a
venda de criptoativos (bitcoins) no ano de 2017 foram devidamente declarados no
Programa Ganho de Capital (GCAP), com recolhimento do imposto correspondente,
de modo que o auto de infração incorreria em "bis in idem", ao tributar
novamente o ganho de capital já declarado e pago.
Repetindo o
entendimento do Acórdão da DRJ, a turma ordinária concluiu que o contribuinte
(i) não justificou a origem dos depósitos de bitcoins em sua conta na exchange,
objeto de venda tão logo caíam nessa conta; e (ii) não comprovou as operações
P2P declaradas na Declaração de Ganho de Capital.
Ademais, em consulta
ao extrato fornecido pela exchange, entendeu-se que os dados das supostas
negociações na modalidade P2P (valor, data etc.) não guardariam relação com
nenhuma das operações relacionadas no documento fornecido pelo contribuinte.
No que tange à
aquisição das criptomoedas (bitcoins) por meio de depósitos desses ativos
diretamente na conta do interessado na exchange, a turma concluiu que o
contribuinte não trouxe informações sobre sua origem, remanescendo sem
justificativa a procedência dos recursos para a aquisição desses ativos.
Em suma, a turma
concluiu pela tributação como acréscimo patrimonial a descoberto dos valores
relativos a operações com criptomoedas para os quais não houve apresentação de
documentos comprobatórios.
No Acórdão
2201-012.167 [6] (de 13/08/25), a turma
decidiu, por unanimidade, por negar provimento ao recurso voluntário, mantendo
a autuação fiscal.
A fiscalização
entendeu que a maioria das operações envolvendo criptomoedas envolveriam tão
somente a venda de tais ativos dentro da plataforma da exchange, sendo o
contribuinte intimado a apresentar de forma individualizada os custos de
aquisições dos bitcoins, o que não teria acontecido em grande parte das
operações na visão das autoridades fiscais.
Em sua impugnação, o
contribuinte afirmava ser profissional da área da tecnologia e ter realizado no
ano de 2017 intermediações de operações de compra e venda de criptomoedas
(bitcoins) na internet. Assim, o contribuinte alegava negociar com compradores e
vendedores, (i) recebendo valores dos compradores para a aquisição da moeda
digital, (ii) efetuando a compra junto aos vendedores, (iii) disponibilizando
ao final a moeda digital na "carteira digital" dos compradores, sendo
remunerado por meio da retenção de uma pequena porcentagem à título de
comissão.
Dessa forma, o
contribuinte assinalava que boa parte dos valores movimentados em sua conta
corrente não se configuram renda própria, mas tão somente valores de
propriedade dos clientes que transitaram em sua conta.
O conselheiro
relator menciona que a questão de fundo no processo diz respeito à incapacidade
do recorrente de comprovar as operações que descreveu em sua defesa, destacando
a expressividade dos valores milionários movimentados pelo recorrente e pela
informalidade das operações de intermediação por ele alegadas (ex.: conversas
de Whatsapp).
No tocante
especificamente à comprovação dos custos de aquisição das criptomoedas para
fins de apuração de ganho de capital, a turma não encontrou meios de concatenar
as vendas de tais ativos com uma aquisição anterior, de modo que os recursos
recebidos foram qualificados juridicamente como acréscimos patrimoniais sem
origem justificada.
Como decorrência da
fragilidade documental, a turma ratificou o entendimento do Acórdão da DRJ no
sentido de que não houve apresentação de qualquer prova ou justificativa que
embasasse as suas alegações de que as informações prestadas pela exchange não
serviriam para comprovar de que o contribuinte foi comprador ou vendedor nas negociações
por ela apontadas.
Conclusões
Diante do exposto, é
possível depreender dos primeiros acórdãos envolvendo a tributação das
criptomoedas a importância da manutenção da documentação comprobatória de todas
as aquisições e alienações de tais ativos, evidenciando a origem dos
rendimentos que geraram tais compras e possibilitando que haja o tratamento
fiscal dos ganhos de capital nas vendas em que for apurado lucro.
[1] FARIA, José
Eduardo, O Estado e o Direito depois da Crise, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2017,
p. 102.
[2] NAKAMOTO,
Satoshi, Bitcoin: A Peer-to-Peer Electronic Cash System.
[3] Sobre o
tema, já tive oportunidade de escrever em outras oportunidades: PINTO,
Alexandre Evaristo ; MOSQUERA, Roberto Quiroga. A tributação dos criptoativos pelo
imposto de renda da pessoa jurídica: uma aproximação entre Contabilidade e
Direito Tributário. In: Alexandre Evaristo Pinto; Pedro Eroles; Roberto Quiroga
Mosquera. (Org.). Criptoativos: estudos regulatórios e tributários. 1ed.São
Paulo: Quartier Latin, 2021, v. 1, p. 503-525. PINTO, Alexandre Evaristo ;
SANTOS, Bruno Fettermann; MOSQUERA, Roberto Quiroga. Consequências fiscais das
operações transnacionais com criptoativos e a evasão de divisas à luz do câmbio
irregular : uma contraposição de posicionamento do Banco Central do Brasil e da
Receita Federal. In: Daniel de Paiva Gomes; Eduardo de Paiva Gomes; Paulo Cesar
Conrado. (Org.). Criptoativos, tokenização, blockchain, metaverso: aspectos
filosóficos, tecnológicos, jurídicos e econômicos. 1ed.São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2022, v. 1, p. 1221-1244. PINTO, Alexandre Evaristo ; REBOUCAS,
Bruno Nogueira. Tributação de Criptoativos em caso de Herança e suas
Implicações no Planejamento Tributário Sucessório. In: Daniel Zugman; Frederico
Bastos; Renato Vilela. (Org.). Planejamento Patrimonial e Sucessório:
controvérsias e aspectos práticos - Volume II. 1ed.São Paulo: Dialética, 2023,
v. 1, p. 165-186.
[4] International
Monetary Fund, Virtual Currencies and Beyond: Initital Considerations, 2016.
[5] Conselheiro
relator José Márcio Bittes.
[6] Conselheiro
relator Thiago Álvares Feital.
Autor: Alexandre Evaristo Pinto é professor concursado
da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São
Paulo (FEA/USP) e da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da
Fundação Getúlio Vargas (Eaesp/FGV), conselheiro do Conselho de Recursos do
Sistema Financeiro Nacional (CRSFN), diretor financeiro da Fundação de Apoio
aos Comitês de Pronunciamentos Contábeis e de Sustentabilidade (FACPCS),
vice-presidente executivo da Apet, ex-conselheiro do Carf, doutorando em
Controladoria e Contabilidade pela Universidade de São Paulo (USP), doutor em
Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela USP, mestre em Direito
Comercial pela USP e ex-presidente da Aconcarf.