O Brasil tornou-se
um grande entusiasta das medidas preconizadas pela Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para aumentar a arrecadação por
meio do incremento da carga tributária incidente sobre grupos multinacionais.
Primeiro, foi a
consagração de novas regras de preços de transferência pela Lei nº
14.596/23, abandonando definitivamente o regime de margens fixas da Lei nº
9.430/96, substituídos por métodos puramente arm's lenght; segundo, com a
instituição de um adicional de CSLL pela Lei nº 15.079/24, o QDMTT
tropical, uma das ferramentas fiscais do Pilar 2 destinadas a assegurar uma
tributação efetiva mínima de 15% sobre os lucros globais de grupos
multinacionais com faturamento superior a 750 milhões de euros [1] e, em
terceiro lugar, com o recentíssimo anúncio da intenção de adesão ao MLI (Multilateral
Instrument), "tratado quadro" que promove mudanças automáticas em uma série de
disposições de tratados contra a dupla tributação para torná-los aderentes às
medidas do Beps [2].
Em meio a tantas
inovações legislativas em busca de alinhamento com os mais recentes padrões de
tributação internacional, causa espanto ainda subsistirem regras tão obsoletas
quanto aquelas que vigoram em matéria de tributação de lucros de controladas no
exterior, as chamadas normas de Tributação em Bases Universais (TBU), que têm a
pretensão de serem normas CFC, mas que verdadeiramente não as são [3].
O desalinhamento
normativo assenta em um vício de origem, que se iniciou há 30 anos - sim,
pasmem, já faz 30 anos que o Brasil editou e insiste em manter vigente uma
legislação cheia de equívocos -, inibidor da expansão de negócios e
investimentos internacionais de nossas multinacionais, por onerar
desmesuradamente os lucros provenientes da sua atuação em outras jurisdições.
Isso simplesmente
porque o sistema brasileiro tributa automaticamente, isto é, independentemente
de distribuição, os lucros obtidos por sociedades controladas domiciliadas no
exterior, sem fazer quaisquer distinções consoante o local de produção
(paraísos fiscais ou países de tributação regular) e/ou a natureza dos
rendimentos produzidos (passivos ou ativos), ao contrário do que todo o mundo faz
e que o próprio Brasil começou a fazer recentemente no plano das pessoas
físicas (Lei nº 14.754/2023).
a) Base legal até
2014: artigo 25 da Lei 9.249/95 e artigo 74 da MP 2.158-35/01
A tributação
automática e indiscriminada de lucros de controladas no exterior foi instituída
pelo artigo 25 da Lei nº 9.249/95, segundo o qual:
"Art. 25 Os lucros,
rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior serão computados na
determinação do lucro real das pessoas jurídicas correspondente ao balanço
levantado em 31 de dezembro de cada ano. (..)
§2º. Os lucros auferidos por filiais, sucursais ou controladas, no exterior, de
pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil serão computados na apuração do lucro
real com observância do seguinte: (..)
II - os lucros a que se refere o inciso I serão adicionados ao lucro líquido da
matriz ou controladora, na proporção de sua participação acionária, para
apuração do lucro real; (..)
§6º Os resultados da avaliação dos investimentos no exterior, pelo método da
equivalência patrimonial, continuarão a ter o tratamento previsto na legislação
vigente [4], sem prejuízo do
disposto nos §§ 1º, 2º e 3º."
O regime de adição
automática dos lucros de controladas no exterior segundo a proporção da
participação foi objeto de acalorados questionamentos, sendo o principal deles
a falta de autorização, por lei complementar, para ficcionar a disponibilidade
do lucro de uma controlada quando de sua apuração, ou seja, antes de qualquer
deliberação acerca da sua destinação [5].
Uma suposta correção
de rumos teria sido viabilizada pela ação coordenada do Executivo que propôs -
e obteve a aprovação pelo Legislativo - da inclusão do § 2º ao artigo 43 do
Código Tributário Nacional [6] e, ato
contínuo, editou o artigo 74 da MP nº 2.158-35/01, segundo o qual:
"Art. 74. Para fim
de determinação da base de cálculo do imposto de renda e da CSLL, nos termos do
art. 25 da Lei no 9.249, de 26 de dezembro de 1995, e do art. 21 desta Medida
Provisória, os lucros auferidos por controlada ou coligada no exterior serão
considerados disponibilizados para a controladora ou coligada no Brasil na data
do balanço no qual tiverem sido apurados, na forma do regulamento."
Está bem de ver que
a legislação que definiu a regra de incidência foi sempre clara no sentido de
que a tributação recairia sobre os lucros da controlada no exterior.
Não havia qualquer
previsão legal estabelecendo a tributação do resultado de equivalência
patrimonial, que seguia tendo o mesmo tratamento, ex vi do §6º do
artigo 25 da Lei n.º 9.249/95, isto é, seria fiscalmente neutro, conforme
previsto no artigo 23 do DL 1.598/77. E nem poderia ser de outra forma, já que
o MEP tem uma função contábil-societária de avaliação do investimento,
fazendo refletir no balanço da controladora as mutações patrimoniais (positivas
ou negativas) das controladas, para conhecimento dos acionistas (artigo 248 da
Lei nº 6.404/76), mas jamais teve, e poderia ter tido, efeitos fiscais, por
corresponder a renda indisponível e não realizada.
Ocorre que uma
instrução normativa - a IN SRF 213/2002 - simples ato administrativo, invadindo
esfera de competência privativa do Legislativo, previu em seu artigo 7º, de
forma inovadora, a obrigação de adição do resultado positivo de equivalência
patrimonial dos investimentos no exterior para fins de apuração do lucro real,
tornando-o - ilegalmente - o verdadeiro objeto de tributação [7].
Ou seja, a
atribuição constitucional para fixação da base de cálculo do imposto de renda,
matéria submetida à reserva estrita e absoluta de lei (artigo 97, IV do CTN),
foi solertemente usurpada pela IN SRF 213/02.
b) Base legal após
2014: o artigo 77 da Lei nº 12.973/2014
A pretensão de
tributar o resultado positivo de equivalência patrimonial, e não de forma
direta o lucro da controlada no exterior em si mesmo considerado, do qual o
primeiro é mero reflexo, assentava no raciocínio falacioso de que haveria
disponibilidade jurídica e econômica desse acréscimo patrimonial, como aqui
nesse espaço já esclarecemos [8].
Acresce que tributar
o reflexo do lucro não distribuído da sociedade estrangeria permitiria
"driblar" a proteção dos tratados internacionais contra a dupla tributação, já
que o resultado de equivalência seria considerado renda própria da sociedade
nacional, não protegida pela regra de competência exclusiva consagrada no
artigo 7 dos tratados em causa.
Por isso que o
artigo 77 da Lei nº 12.973/2014 veio prever que:
"Art. 77. A parcela
do ajuste do valor do investimento em controlada, direta ou indireta,
domiciliada no exterior equivalente aos lucros por ela auferidos antes do
imposto sobre a renda, excetuando a variação cambial, deverá ser computada na
determinação do lucro real e na base de cálculo da Contribuição Social sobre o
Lucro Líquido - CSLL da pessoa jurídica controladora domiciliada no Brasil,
observado o disposto no art. 76.
§1º. A parcela do ajuste de que trata o caput compreende apenas os lucros
auferidos no período, não alcançando as demais parcelas que influenciaram o
patrimônio líquido da controlada, direta ou indireta, domiciliada no exterior."
Ou seja, a lei nova
passou a eleger como base de cálculo a parcela do resultado de equivalência
patrimonial dos investimentos em controladas no exterior correspondente aos
lucros auferidos pela controladas. Na verdade, segue-se tributando a mesmíssima
materialidade, apenas com um novo "nomen iuris". Mas, ao assim fazer,
tentou-se "realocar" o objeto da tributação para o patrimônio da pessoa
jurídica brasileira, em insidiosa burla à proteção dos tratados.
c) Questão da
compatibilidade da lei interna com os tratados e a necessária distinção dos
períodos até 2014 e depois de 2014
Do que acima se
expôs, pode-se concluir que para a correta análise da compatibilidade das
normas da lei interna com os tratados contra a dupla tributação torna
necessário examinar a questão em dois momentos temporais distintos.
Como se viu, em um
primeiro momento tributou-se o "lucro" apurado pela controlada, que seria
objeto de adição direta ao lucro real das pessoas jurídicas. A base legal dessa
tributação é o artigo 25 da Lei nº 9.249/95, complementado pelo artigo 74 da MP
nº 2.158-35/01. A tributação do resultado de equivalência patrimonial até 2014
é obra inovadora de uma instrução normativa desprovida de base legal.
Ora, o RE 870.214,
em que o STF examina a questão da compatibilidade do artigo 7 dos tratados com
a lei interna em matéria de lucros no exterior, diz respeito exclusivamente
ao período anterior a 2014, isto é, antes da entrada em vigor do
artigo 77 da Lei nº 12.973, de 13 de maio de 2014.
Trata-se de questão
que foi solucionada pelo STJ, no âmbito das suas competências constitucionais,
há mais de dez anos.
Com efeito, no
julgamento do REsp nº 1.325.709/RJ, foram apreciadas duas questões centrais de
direito: (1) incompatibilidade do regime da lei interna com as disposições de
tratados internacionais; e (2) a ilegalidade do artigo 7º da IN/SRF nº
213/02 [9].
Referidas questões
foram assim solucionadas, como se lê na ementa do acórdão:
(1) No caso de
empresa controlada, dotada de personalidade jurídica própria e distinta da
controladora, nos termos dos tratados internacionais, os lucros por ela
auferidos são lucros próprios e assim tributados somente no país do seu
domicilio; a sistemática adotada pela legislação fiscal nacional de
adicioná-los ao lucro da empresa controladora brasileira termina por ferir os
pactos internacionais tributários e infringir o princípio da boa-fé nas
relações exteriores, a que o Direito Internacional não confere abono.
(2) O artigo 7º, §1º
da IN/SRF 213/02 extrapolou os limites impostos pela própria lei federal
(artigo 25 da Lei 9.249/95 e 74 da MP 2.158-35/01) a qual objetivou regular;
com efeito, analisando-se a legislação complementar ao artigo 74 da MP 2.158-35/01,
contata-se que o regime fiscal vigente é o do artigo 23 do DL 1.598/77, que em
nada foi alterado quanto à não inclusão, na determinação do lucro real, dos
métodos resultantes da avaliação dos investimentos no exterior, pelo método da
equivalência patrimonial, isto é, das contrapartidas do ajuste do valor do
investimento em sociedades estrangeiras controladas.
Vê-se, portanto, que
antes de 2014 o exame da questão da (in)compatibilidade deve se dar à vista de
questão de saber se há base legal para a tributação do resultado de
equivalência, eis que, para aqueles que consideram ser tal resultado renda
própria da entidade nacional e, por isso, fora do alcance protetivo dos
tratados, é pressuposto essencial que haja base legal para tal tributação.
Ora, como se viu, a
base legal dessa nova materialidade só surge após a Lei nº 12.973, de 2014.
Compatível ou incompatível com os tratados, há que haver lei prevendo a nova
base de cálculo. Não havendo, como não há, antes de 2014, dúvidas não podem
subsistir que a questão se resolve pelo princípio mais basilar do direito
tributário que é o princípio da legalidade da tributação (artigo 150,
I da CF/88). Afastando-se a aplicação da IN 213/2002 e aplicando-se a Lei nº
9.249/95, não há dúvidas que o objeto da tributação é o lucro de sociedade
estrangeira e, como corretamente disse o STJ, tal pretensão encontra obstáculo
no artigo 7 dos tratados contra a dupla tributação.
Enquanto o Brasil
não modernizar sua TBU, transformando-a em verdadeira CFC, seguem em curso
litígios em busca da legítima desoneração dos lucros das controladas de
tributação automática e a sua solução terá que ser encaminhada sob esse enfoque
temporal (antes e depois de 2014), caso contrário estar-se-á dando foros de
legitimidade tributária a atos administrativos subalternos, ao arrepio do
princípio da legalidade.
[1] Aqui
[2] Aqui
[3] Cfr. Alberto
Xavier, Direito Tributário Internacional do Brasil, 8ª ed., 2015, 494 ss.
[4] A legislação
vigente a que se refere o dispositivo é o art. 23 do DL 1.598/77, que exclui de
tributação e de dedução referido resultado.
[5] Cfr. Alberto
Xavier, Direito Tributário Internacional do Brasil, 7ª ed., 2010, 372 ss.
[6] §2º Na
hipótese de receita ou de rendimento oriundos do exterior, a lei estabelecerá
as condições e o momento em que se dará sua disponibilidade, para fins de
incidência do imposto referido neste artigo".
[7] Art. 7º A
contrapartida do ajuste do valor do investimento no exterior em filial,
sucursal, controlada ou coligada, avaliado pelo método da equivalência
patrimonial, conforme estabelece a legislação comercial e fiscal brasileira,
deverá ser registrada para apuração do lucro contábil da pessoa jurídica no
Brasil
[8] Aqui
[9] Art. 7º A
contrapartida do ajuste do valor do investimento no exterior em filial,
sucursal, controlada ou coligada, avaliado pelo método da equivalência
patrimonial, conforme estabelece a legislação comercial e fiscal brasileira,
deverá ser registrada para apuração do lucro contábil da pessoa jurídica no
Brasil
Autor: Roberto Duque Estrada é sócio-fundador do
Brigagão, Duque Estrada Advogados.