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Tributação de lucros no exterior no RE 870.214: uma questão de (i)legalidade


Publicada em 06/10/2025 às 09:00h 

O Brasil tornou-se um grande entusiasta das medidas preconizadas pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para aumentar a arrecadação por meio do incremento da carga tributária incidente sobre grupos multinacionais.

Primeiro, foi a consagração de novas regras de preços de transferência pela Lei nº 14.596/23, abandonando definitivamente o regime de margens fixas da Lei nº 9.430/96, substituídos por métodos puramente arm's lenght; segundo, com a instituição de um adicional de CSLL pela Lei nº 15.079/24, o QDMTT tropical, uma das ferramentas fiscais do Pilar 2 destinadas a assegurar uma tributação efetiva mínima de 15% sobre os lucros globais de grupos multinacionais com faturamento superior a 750 milhões de euros [1] e, em terceiro lugar, com o recentíssimo anúncio da intenção de adesão ao MLI (Multilateral Instrument), "tratado quadro" que promove mudanças automáticas em uma série de disposições de tratados contra a dupla tributação para torná-los aderentes às medidas do Beps [2].

Em meio a tantas inovações legislativas em busca de alinhamento com os mais recentes padrões de tributação internacional, causa espanto ainda subsistirem regras tão obsoletas quanto aquelas que vigoram em matéria de tributação de lucros de controladas no exterior, as chamadas normas de Tributação em Bases Universais (TBU), que têm a pretensão de serem normas CFC, mas que verdadeiramente não as são [3].

O desalinhamento normativo assenta em um vício de origem, que se iniciou há 30 anos - sim, pasmem, já faz 30 anos que o Brasil editou e insiste em manter vigente uma legislação cheia de equívocos -, inibidor da expansão de negócios e investimentos internacionais de nossas multinacionais, por onerar desmesuradamente os lucros provenientes da sua atuação em outras jurisdições.

Isso simplesmente porque o sistema brasileiro tributa automaticamente, isto é, independentemente de distribuição, os lucros obtidos por sociedades controladas domiciliadas no exterior, sem fazer quaisquer distinções consoante o local de produção (paraísos fiscais ou países de tributação regular) e/ou a natureza dos rendimentos produzidos (passivos ou ativos), ao contrário do que todo o mundo faz e que o próprio Brasil começou a fazer recentemente no plano das pessoas físicas (Lei nº 14.754/2023).

a) Base legal até 2014: artigo 25 da Lei 9.249/95 e artigo 74 da MP 2.158-35/01

A tributação automática e indiscriminada de lucros de controladas no exterior foi instituída pelo artigo 25 da Lei nº 9.249/95, segundo o qual:

"Art. 25 Os lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior serão computados na determinação do lucro real das pessoas jurídicas correspondente ao balanço levantado em 31 de dezembro de cada ano. (..)
§2º. Os lucros auferidos por filiais, sucursais ou controladas, no exterior, de pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil serão computados na apuração do lucro real com observância do seguinte: (..)
II - os lucros a que se refere o inciso I serão adicionados ao lucro líquido da matriz ou controladora, na proporção de sua participação acionária, para apuração do lucro real; (..)
§6º Os resultados da avaliação dos investimentos no exterior, pelo método da equivalência patrimonial, continuarão a ter o tratamento previsto na legislação vigente  [4], sem prejuízo do disposto nos §§ 1º, 2º e 3º."

O regime de adição automática dos lucros de controladas no exterior segundo a proporção da participação foi objeto de acalorados questionamentos, sendo o principal deles a falta de autorização, por lei complementar, para ficcionar a disponibilidade do lucro de uma controlada quando de sua apuração, ou seja, antes de qualquer deliberação acerca da sua destinação [5].

Uma suposta correção de rumos teria sido viabilizada pela ação coordenada do Executivo que propôs - e obteve a aprovação pelo Legislativo - da inclusão do § 2º ao artigo 43 do Código Tributário Nacional [6] e, ato contínuo, editou o artigo 74 da MP nº 2.158-35/01, segundo o qual:

"Art. 74. Para fim de determinação da base de cálculo do imposto de renda e da CSLL, nos termos do art. 25 da Lei no 9.249, de 26 de dezembro de 1995, e do art. 21 desta Medida Provisória, os lucros auferidos por controlada ou coligada no exterior serão considerados disponibilizados para a controladora ou coligada no Brasil na data do balanço no qual tiverem sido apurados, na forma do regulamento."

Está bem de ver que a legislação que definiu a regra de incidência foi sempre clara no sentido de que a tributação recairia sobre os lucros da controlada no exterior.

Não havia qualquer previsão legal estabelecendo a tributação do resultado de equivalência patrimonial, que seguia tendo o mesmo tratamento, ex vi do §6º do artigo 25 da Lei n.º 9.249/95, isto é, seria fiscalmente neutro, conforme previsto no artigo 23 do DL 1.598/77. E nem poderia ser de outra forma, já que o MEP tem uma função contábil-societária de avaliação do investimento, fazendo refletir no balanço da controladora as mutações patrimoniais (positivas ou negativas) das controladas, para conhecimento dos acionistas (artigo 248 da Lei nº 6.404/76), mas jamais teve, e poderia ter tido, efeitos fiscais, por corresponder a renda indisponível e não realizada.

Ocorre que uma instrução normativa - a IN SRF 213/2002 - simples ato administrativo, invadindo esfera de competência privativa do Legislativo, previu em seu artigo 7º, de forma inovadora, a obrigação de adição do resultado positivo de equivalência patrimonial dos investimentos no exterior para fins de apuração do lucro real, tornando-o - ilegalmente - o verdadeiro objeto de tributação [7].

Ou seja, a atribuição constitucional para fixação da base de cálculo do imposto de renda, matéria submetida à reserva estrita e absoluta de lei (artigo 97, IV do CTN), foi solertemente usurpada pela IN SRF 213/02.

b) Base legal após 2014: o artigo 77 da Lei nº 12.973/2014

A pretensão de tributar o resultado positivo de equivalência patrimonial, e não de forma direta o lucro da controlada no exterior em si mesmo considerado, do qual o primeiro é mero reflexo, assentava no raciocínio falacioso de que haveria disponibilidade jurídica e econômica desse acréscimo patrimonial, como aqui nesse espaço já esclarecemos [8].

Acresce que tributar o reflexo do lucro não distribuído da sociedade estrangeria permitiria "driblar" a proteção dos tratados internacionais contra a dupla tributação, já que o resultado de equivalência seria considerado renda própria da sociedade nacional, não protegida pela regra de competência exclusiva consagrada no artigo 7 dos tratados em causa.

Por isso que o artigo 77 da Lei nº 12.973/2014 veio prever que:

"Art. 77. A parcela do ajuste do valor do investimento em controlada, direta ou indireta, domiciliada no exterior equivalente aos lucros por ela auferidos antes do imposto sobre a renda, excetuando a variação cambial, deverá ser computada na determinação do lucro real e na base de cálculo da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido - CSLL da pessoa jurídica controladora domiciliada no Brasil, observado o disposto no art. 76.
§1º. A parcela do ajuste de que trata o caput compreende apenas os lucros auferidos no período, não alcançando as demais parcelas que influenciaram o patrimônio líquido da controlada, direta ou indireta, domiciliada no exterior."

Ou seja, a lei nova passou a eleger como base de cálculo a parcela do resultado de equivalência patrimonial dos investimentos em controladas no exterior correspondente aos lucros auferidos pela controladas. Na verdade, segue-se tributando a mesmíssima materialidade, apenas com um novo "nomen iuris". Mas, ao assim fazer, tentou-se "realocar" o objeto da tributação para o patrimônio da pessoa jurídica brasileira, em insidiosa burla à proteção dos tratados.

c) Questão da compatibilidade da lei interna com os tratados e a necessária distinção dos períodos até 2014 e depois de 2014

Do que acima se expôs, pode-se concluir que para a correta análise da compatibilidade das normas da lei interna com os tratados contra a dupla tributação torna necessário examinar a questão em dois momentos temporais distintos.

Como se viu, em um primeiro momento tributou-se o "lucro" apurado pela controlada, que seria objeto de adição direta ao lucro real das pessoas jurídicas. A base legal dessa tributação é o artigo 25 da Lei nº 9.249/95, complementado pelo artigo 74 da MP nº 2.158-35/01. A tributação do resultado de equivalência patrimonial até 2014 é obra inovadora de uma instrução normativa desprovida de base legal.

Ora, o RE 870.214, em que o STF examina a questão da compatibilidade do artigo 7 dos tratados com a lei interna em matéria de lucros no exterior, diz respeito exclusivamente ao período anterior a 2014, isto é, antes da entrada em vigor do artigo 77 da Lei nº 12.973, de 13 de maio de 2014.

Trata-se de questão que foi solucionada pelo STJ, no âmbito das suas competências constitucionais, há mais de dez anos.

Com efeito, no julgamento do REsp nº 1.325.709/RJ, foram apreciadas duas questões centrais de direito: (1) incompatibilidade do regime da lei interna com as disposições de tratados internacionais; e (2) a ilegalidade do artigo 7º da IN/SRF nº 213/02 [9].

Referidas questões foram assim solucionadas, como se lê na ementa do acórdão:

(1) No caso de empresa controlada, dotada de personalidade jurídica própria e distinta da controladora, nos termos dos tratados internacionais, os lucros por ela auferidos são lucros próprios e assim tributados somente no país do seu domicilio; a sistemática adotada pela legislação fiscal nacional de adicioná-los ao lucro da empresa controladora brasileira termina por ferir os pactos internacionais tributários e infringir o princípio da boa-fé nas relações exteriores, a que o Direito Internacional não confere abono.

(2) O artigo 7º, §1º da IN/SRF 213/02 extrapolou os limites impostos pela própria lei federal (artigo 25 da Lei 9.249/95 e 74 da MP 2.158-35/01) a qual objetivou regular; com efeito, analisando-se a legislação complementar ao artigo 74 da MP 2.158-35/01, contata-se que o regime fiscal vigente é o do artigo 23 do DL 1.598/77, que em nada foi alterado quanto à não inclusão, na determinação do lucro real, dos métodos resultantes da avaliação dos investimentos no exterior, pelo método da equivalência patrimonial, isto é, das contrapartidas do ajuste do valor do investimento em sociedades estrangeiras controladas.

Vê-se, portanto, que antes de 2014 o exame da questão da (in)compatibilidade deve se dar à vista de questão de saber se há base legal para a tributação do resultado de equivalência, eis que, para aqueles que consideram ser tal resultado renda própria da entidade nacional e, por isso, fora do alcance protetivo dos tratados, é pressuposto essencial que haja base legal para tal tributação.

Ora, como se viu, a base legal dessa nova materialidade só surge após a Lei nº 12.973, de 2014. Compatível ou incompatível com os tratados, há que haver lei prevendo a nova base de cálculo. Não havendo, como não há, antes de 2014, dúvidas não podem subsistir que a questão se resolve pelo princípio mais basilar do direito tributário que é o princípio da legalidade da tributação (artigo 150, I da CF/88). Afastando-se a aplicação da IN 213/2002 e aplicando-se a Lei nº 9.249/95, não há dúvidas que o objeto da tributação é o lucro de sociedade estrangeira e, como corretamente disse o STJ, tal pretensão encontra obstáculo no artigo 7 dos tratados contra a dupla tributação.

Enquanto o Brasil não modernizar sua TBU, transformando-a em verdadeira CFC, seguem em curso litígios em busca da legítima desoneração dos lucros das controladas de tributação automática e a sua solução terá que ser encaminhada sob esse enfoque temporal (antes e depois de 2014), caso contrário estar-se-á dando foros de legitimidade tributária a atos administrativos subalternos, ao arrepio do princípio da legalidade.

[1] Aqui

[2] Aqui

[3] Cfr. Alberto Xavier, Direito Tributário Internacional do Brasil, 8ª ed., 2015, 494 ss.

[4] A legislação vigente a que se refere o dispositivo é o art. 23 do DL 1.598/77, que exclui de tributação e de dedução referido resultado.

[5] Cfr. Alberto Xavier, Direito Tributário Internacional do Brasil, 7ª ed., 2010, 372 ss.

[6] §2º Na hipótese de receita ou de rendimento oriundos do exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará sua disponibilidade, para fins de incidência do imposto referido neste artigo".

[7] Art. 7º A contrapartida do ajuste do valor do investimento no exterior em filial, sucursal, controlada ou coligada, avaliado pelo método da equivalência patrimonial, conforme estabelece a legislação comercial e fiscal brasileira, deverá ser registrada para apuração do lucro contábil da pessoa jurídica no Brasil

[8] Aqui

[9] Art. 7º A contrapartida do ajuste do valor do investimento no exterior em filial, sucursal, controlada ou coligada, avaliado pelo método da equivalência patrimonial, conforme estabelece a legislação comercial e fiscal brasileira, deverá ser registrada para apuração do lucro contábil da pessoa jurídica no Brasil

Autor: Roberto Duque Estrada é sócio-fundador do Brigagão, Duque Estrada Advogados.








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