O Projeto de Lei
Complementar 125/2022, ao instituir o Código de Defesa do Contribuinte, avança
na relação Fisco-contribuinte, mas peca ao unificar o tratamento do devedor contumaz.
A ausência de gradação entre o inadimplente eventual e o fraudador sistemático
viola a proporcionalidade e a isonomia, demandando um aperfeiçoamento
técnico-jurídico urgente.
Mesmo o projeto de
lei representando um marco para o sistema tributário nacional, a definição de
devedor contumaz, prevista em seus artigos, revela uma lacuna conceitual que
pode gerar graves distorções: falta um critério que diferencie o contribuinte
em dificuldade financeira daquele que adota a sonegação como estratégia de negócio.
O projeto estabelece
um conceito único, baseado em critérios objetivos de valor e tempo.
Considera-se contumaz o devedor com débitos superiores a R$ 15 milhões, que
representem mais de 100% de seu patrimônio, mantidos por quatro períodos
consecutivos ou seis alternados em 12 meses.
Embora a
objetividade seja bem-vinda para a segurança jurídica, a norma falha ao aplicar
consequências uniformes a situações fáticas manifestamente distintas, violando
o princípio da isonomia em sua dimensão material.
Ao prever sanções
severas, como a vedação à recuperação judicial, para todo e qualquer
contribuinte que se enquadre nesses critérios, o PLP 125/2022 ignora o elemento
volitivo (dolo ou culpa) que deveria ser intrínseco à contumácia.
Trata, de forma
idêntica, a empresa que, em crise, opta por pagar salários em detrimento de
tributos e a organização empresarial estruturada para a fraude fiscal. Esta
abordagem não apenas contraria a razoabilidade, mas também se mostra ineficaz
como política de arrecadação e conformidade.
A necessária
distinção entre inadimplência eventual e contumácia dolosa
A etimologia do
termo "contumaz" remete à obstinação e rebeldia. No direito sancionador, a
contumácia pressupõe a reiteração deliberada de uma conduta ilícita, e não a
mera inadimplência circunstancial. Um conceito juridicamente hígido de devedor
contumaz exige a conjugação de dois elementos:
Critério Objetivo: O
quantum e a periodicidade da inadimplência.
Critério Subjetivo:
O elemento anímico, a intenção de fraudar (dolo) ou a culpa grave.
O PLP 125/2022, ao
se concentrar exclusivamente no primeiro critério e tratar o segundo de forma
genérica como "inadimplência injustificada", abre margem para a aplicação
desproporcional de sanções, com consequências gravíssimas para a segurança
jurídica e a preservação da empresa.
Com o objetivo de
aperfeiçoar o projeto e alinhá-lo aos preceitos constitucionais, propõe-se a
criação de um sistema de gradação que preserva os parâmetros objetivos do PLP,
mas os reorganiza em três níveis de gravidade, com base na comprovação do
elemento subjetivo.
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Grau
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Tipologia
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Caracterização
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Sanções
preponderantes
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I
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Devedor Eventual
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Preenche os
critérios objetivos, mas sem comprovação de dolo ou fraude. A inadimplência
decorre de dificuldades financeiras legítimas.
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Sanções
administrativas restritivas (e.g., vedação a novos benefícios fiscais), com
preservação do direito à recuperação judicial.
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II
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Devedor Contumaz
Intermediário
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Além dos critérios
objetivos, há indícios de dolo eventual ou negligência grave (e.g.,
descumprimento reiterado de parcelamentos).
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Sanções mais
gravosas (e.g., impedimento de licitar), mas com a manutenção do direito à
recuperação judicial.
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III
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Devedor Contumaz
Qualificado
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Comprovação de
dolo direto e fraude sistemática (e.g., uso de interpostas pessoas, emissão
de notas fiscais inidôneas).
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Sanções máximas,
incluindo a vedação à propositura ou prosseguimento da recuperação judicial e
a responsabilização de sócios e administradores.
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Este modelo
trifásico concretiza o princípio da proporcionalidade, reservando a medida mais
drástica, a exclusão da proteção da Lei nº 11.101/2005, apenas para os casos em
que a fraude é comprovada, mediante devido processo administrativo em que se
garanta o contraditório e a ampla defesa.
O ônus probatório do
elemento subjetivo, naturalmente, recai sobre a administração tributária, em
respeito à presunção de inocência que irradia seus efeitos sobre o direito
administrativo sancionador (STF, MS 24.268/MG).
Harmonização
nacional e os desafios da reforma tributária (EC 132/2023)
A fragmentação das
legislações estaduais sobre o tema já demonstra o risco da ausência de uma
norma geral cogente. A proposta de gradação deve ser acompanhada de uma
harmonização nacional obrigatória, evitando a "guerra fiscal às avessas".
A urgência é
acentuada pela reforma tributária. A criação do Imposto sobre Bens e Serviços
(IBS), de competência compartilhada e com arrecadação centralizada por um
Comitê Gestor, torna impraticável a existência de 5.595 regramentos distintos
sobre o devedor contumaz. A caracterização da contumácia no âmbito do IBS deve
ser centralizada no Comitê Gestor, com base em critérios uniformes e no sistema
de gradação aqui proposto, sob pena de se instalar o caos
jurídico-administrativo durante e após o período de transição.
O PLP 125/2022,
portanto, não pode ser analisado isoladamente. Ele é peça fundamental na
construção do novo sistema tributário nacional.
A introdução de um
sistema de gradação para o devedor contumaz não é mera questão de técnica
legislativa, mas uma exigência de constitucionalidade, proporcionalidade e
racionalidade econômica, capaz de aumentar a efetividade da arrecadação sem
sacrificar empresas viáveis por dificuldades conjunturais.
O momento para este
aprimoramento é agora, durante a tramitação legislativa, para que o novo Código
de Defesa do Contribuinte nasça alinhado não apenas à Constituição, mas também
ao futuro do federalismo fiscal brasileiro.
Autor: Gabriel de Souza Ramos Borges. É advogado
tributarista, mestre em Direito Tributário, conselheiro tributário da
Associação Comercial do Paraná (ACP/PR) e associado ao Instituto de Aplicação
do Tributo (IAT), ao Instituto de Direito Tributário do Paraná (IDT/PR) e ao
Instituto Tax Moot Brazil (ITMB).