O tema do
planejamento tributário envolvendo segregação de atividades empresariais - e os
limites de sua oponibilidade ao Fisco - não é novo. Mas a recente Solução de
Consulta Cosit nº 72/2025 reacendeu as discussões que há muito vêm sendo
travadas no âmbito do Carf com relação à exigência centralizada de IRPJ e CSLL
nos casos de segregação de atividades dentro de um grupo econômico.
A segregação de
atividades pode ser entendida como a constituição de duas ou mais pessoas
jurídicas, dentro de um mesmo grupo econômico, que desempenhem suas atividades
com autonomia. A medida pode se justificar por questões gerenciais,
sucessórias, estratégicas ou, ainda, fiscais. No entanto, quando a finalidade
única é a economia tributária e há artificialidade na segregação das
atividades, é comum que a Receita Federal exija do contribuinte os tributos que
deixaram de ser recolhidos e, posteriormente, a autuação seja mantida pelo
Carf.
Em tese,
considerando o que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal da ADI nº
2.446 [1], o contribuinte pode "buscar, pelas vias
legítimas e comportamentos coerentes com a ordem jurídica, economia fiscal,
realizando suas atividades de forma menos onerosa, e, assim, deixando de pagar
tributos quando não configurado fato gerador cuja ocorrência tenha sido
licitamente evitada". Por outro lado, quando "se comprove que o sujeito
passivo (.) agiu com dolo, fraude ou simulação", nos termos do artigo 149, VII,
do CTN, deve a autoridade fiscal efetuar o lançamento tributário.
Ocorre que, como bem
alerta Sergio André Rocha [2], a discussão teórica
dos limites ao planejamento tributário - isto é, a existência de um dever
constitucional de pagar tributos ou um direito fundamental de economizá-los -
não contribui para a solução de casos concretos. E, sendo assim, analisaremos a
seguir a Solução de Consulta Cosit nº 72/2025 e a jurisprudência da 1ª Seção do
Carf, para identificar as circunstâncias concretas que levam à inoponibilidade
ao Fisco da segregação de atividades empresariais.
Solução de Consulta
Cosit nº 72/2025
No caso analisado
pela Solução de Consulta Cosit nº 72/2025, a consulente, uma empresa optante
pela apuração do IRPJ e da CSLL na sistemática lucro presumido, foi adquirida
por outra, que desempenha a mesma atividade, em outra localidade, e está
sujeita ao lucro real. Diante disso, questionou acerca da possibilidade de se
manter optante pelo lucro presumido, considerando que continuará produzindo e
comercializando seus produtos com marca própria, de forma independente e em
localidade distinta de sua sócia.
A Receita Federal,
ao enfrentar o tema, distingue o "grupo econômico formado de acordo com a
Lei das S.A." do "grupo econômico irregular", que atrai a
responsabilização solidária por débitos tributários nos termos do artigo 124 do
CTN [3].
E, a partir de tal
premissa, concluiu que, nos casos "em que há pleno respeito à
independência da personalidade jurídica de seus integrantes, mantendo-se a
autonomia patrimonial, administrativa e operacional de cada um deles", a
segregação de atividades empresariais não caracteriza, necessariamente, abuso
de personalidade jurídica ou planejamento tributário abusivo.
Por outro
lado, "caso seja constatado que, em duas pessoas jurídicas com CNPJ
formalmente diversos, há um mesmo quadro societário ou elas integrem um mesmo
grupo econômico, há um mesmo objeto social e há uma mesma administração", as
empresas podem ser enquadradas como uma só, mas com dois estabelecimentos.
Interessante notar
que, nos termos da referida solução de consulta, o fato de as pessoas jurídicas
estarem sujeitas a uma mesma administração, isto é, a uma "unidade de
direção e de operação das atividades empresariais", parece ser um elemento
importante na caracterização da ausência de autonomia e, portanto, na
inoponibilidade ao Fisco da segregação de atividades empresariais.
Jurisprudência da 1ª
Seção do Carf
No Acórdão nº
9101-002.397 ("Caso Estaleiro Schaefer"), julgado por unanimidade de
votos, em 17.07.2016, de forma contrária à tese do contribuinte, examinou-se
autos de infração para exigência de IRPJ, CSLL, Contribuição ao PIS e Cofins,
em razão de suposta confusão patrimonial e de atividades entre empresas de um
mesmo grupo, o que resultou na apuração dos tributos de forma consolidada.
No caso, uma
empresa, que atuava no ramo náutico, segregou suas atividades em duas pessoas
jurídicas distintas, Kiwi Boats e Schaefer Yatchs, cada uma com receita bruta
inferior a 78 milhões por ano, de forma a manter a possibilidade de opção pela
sistemática do lucro presumido [4]. Conforme
constatado pela autoridade fiscal, (1) as notas fiscais de insumos de uma
pessoa jurídica foram escrituradas na contabilidade da outra; (2) não havia
nota fiscal ou registros contábeis de transferência de produtos entre as
empresas; (3) Kiwi Boats e Schaefer Yatchs compartilhavam a mesma localização
geográfica, estrutura operacional, administração e funcionários da
contabilidade; e (4) apesar de haver contrato de aluguel entre as empresas, não
ocorreu o pagamento ou o registro contábil correlato.
Em seu voto, o
relator teceu diversas considerações teóricas acerca da liberdade do
contribuinte de estruturar seu capital da forma mais eficiente, inclusive por
meio da segmentação de entidades empresariais, e da inexistência de norma que o
obrigue a concentrar seu patrimônio em uma única entidade. No entanto, ao
analisar as peculiaridades fáticas, concluiu que havia evidências de simulação
(1) na estrutura negocial, vez que inexistia estrutura para que cada empresa
segregada explorasse a atividade que alegava desenvolver; (2) na estrutura
financeira e contábil, pois não havia contabilidade ou documentação fiscal
hábil a demonstrar as operações praticadas por cada uma das empresas que,
alegadamente se dedicavam a segmentos distintos do processo produtivo; e (3) na
estrutura física e operacional, uma vez que as empresas compartilhavam as
mesmas instalações físicas, sem que houvesse compartilhamento de despesas ou
pagamento de alugueis.
No Acórdão nº
9101-002.429 ("Caso Transpinho"), julgado em 18/8/2016, por maioria de
votos, de forma contrária ao contribuinte, analisou-se autos de infração
lavrados para exigência, dentre outros, de IRPJ e CSLL em razão de suposto não
oferecimento à tributação de ganhos de capital sobre alienação de imóveis. Isso
porque, de acordo com a autoridade fiscal, a Transpinho foi objeto de cisão
parcial com versão de bens para a Saiqui, empresa do grupo que tinha por objeto
social a compra e venda de imóveis e era optante pelo lucro presumido, com
objetivo único de reduzir a tributação sobre rendimentos obtidos com a venda de
tais bens.
O relator, após
discorrer acerca da superação do pensamento liberal, que privilegiava a
liberdade econômica e a propriedade privada, pela priorização do bem-estar
social, concluiu que as operações analisadas foram realizadas sem qualquer
propósito negocial, "objetivando burlar a tributação, ao aparentarem
conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas (.) daquelas às quais
realmente se conferem, ou transmitem", configurando simulação nos termos do §
1º do artigo 167 do Código Civil.
As circunstâncias
fáticas que levaram o colegiado, por maioria de votos, a concluir pela
existência de simulação foram, principalmente, (1) a ausência de estrutura
física ou mão-de-obra apta para a Saiqui desenvolver as atividades objeto de
seu contrato social, já que não possuía empregados e passou a ter apenas 2 em
2008 e sua sede se situava nos fundos do terreno da Transpinho; (2) o
compartilhamento de telefone, endereço eletrônico e o responsável pelo
preenchimento de declarações fiscais entre as empresas; e (3) a
descapitalização da Saqui após a alienação dos imóveis, vez que o produto da
venda foi restituído aos sócios por meio de distribuição de lucros.
Vale notar que o
"Caso Transpinho" foi submetido ao Poder Judiciário e julgado favoravelmente ao
contribuinte pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região [5].
Isso porque entenderam os desembargadores que "a reorganização patrimonial
realizada pelo contribuinte, quando levada a efeito por meio de negócios
jurídicos e operações verdadeiros, ainda que tenha por resultado a economia de
tributos, não autoriza o Fisco a desconsiderá-los, pois não existe - e nem
poderia existir, porque ofenderia o artigo 170 da Constituição - uma norma
geral que obrigue o administrado a, frente à possibilidade de submeter-se a
dois regimes fiscais, optar pelo mais gravoso".
Posteriormente, em
9/5/2017, foram proferidos o Acórdão nº 9101-002.793, o Acórdão nº
9101-002.794 e o Acórdão nº 9101-002.795, todos do mesmo contribuinte
("Casos Mondial") e julgados por voto de qualidade de forma contrária à tese
defendida pelo contribuinte [6]. O primeiro
decorreu de autos de infração para a exigência de IPI, o segundo de
Contribuição ao PIS e Cofins e o terceiro de IRPJ e CSLL, todos em razão de
suposta segregação indevida de atividades por empresas de um mesmo grupo
econômico.
No caso, em breve
síntese, as empresas MK e ME, optantes pela sistemática do lucro presumido,
supostamente vendiam produtos superfaturados para Mondial, submetida ao lucro
real, que revendia os produtos aos clientes externos e concentrava as despesas
do grupo. Dessa forma, de acordo com a Autoridade Fiscal, as receitas eram
artificialmente alocadas em pessoas jurídicas optantes pelo lucro presumido,
enquanto as despesas eram deduzidas naquela sujeita ao lucro real.
O relator, cujo voto
foi vencedor, após tratar do desvirtuamento da livre iniciativa para justificar
construções societárias descontextualizadas, listou os indícios de segregação
artificial de atividades existentes, quais sejam: (') empresas funcionando no
mesmo endereço, compartilhando contas de consumo e exercendo a mesma atividade;
(2) compartilhamento da marca comercial; (3) sócios majoritários comuns com
sede no Uruguai e utilização de terceiros na constituição das empresas; (4)
mesma direção e mesmos funcionários nos cargos de gerência; e (5) realização de
transações internas entre empresas e compartilhamento de informações contábeis
e financeiras.
Interessante notar
que o relator evidenciou, numericamente, a economia fiscal experimentada em
razão da concentração de maior parte das despesas na empresa optante pelo lucro
real e da alocação de maior parte da receita nas empresas optantes pelo lucro
presumido, o que, supostamente, confirmaria o indício de segregação artificial
de atividades no caso concreto.
Por fim, mas sem a
pretensão de esgotar o tema, ainda em 2017, foi proferido o Acórdão nº
9101-002.880 ("Caso Pandurata Alimentos"), julgado por unanimidade de
votos de forma contrária à tese defendida pelo contribuinte em 6/6/2017. Trata
o caso de autos de infração para exigência de IRPJ e CSLL em razão da glosa de
despesas com pagamento de comissões pela Pandurata Alimentos à Pandurata
Assessoria, ambas controladas pela Pandurata Participações e pertencentes ao
Grupo Bauducco.
De acordo com a
Autoridade Fiscal, como a Pandurata Alimentos era tributada no lucro real e a
Pandurata Assessoria no lucro presumido, os serviços fictícios foram deduzidos
na primeira e tributados na segunda, ensejando redução na carga tributária do
grupo econômico por meio de operação "desprovida de propósito negocial e
caracterizadora de abuso de forma e de dissimulação".
Em seu voto, o
relator não negou que os contribuintes têm direito à auto-organização, bem como
o dever de perseguir economia tributária - o que, entretanto, não pode ser
feito de maneira abusiva. E acrescentou que os atos formalmente legais, mas
desprovidos de substância, "não são oponíveis ao Fisco quando tenham por
finalidade única ou primordial reduzir os tributos a este devidos".
Diante disso,
concluíram os julgadores que a Pandurata Assessoria nunca prestou os serviços
de assessoria comercial para os quais foi constituída e, embora tivesse
existência formal, não possuía substância, pois não desenvolvia "as atividades
descritas em seu contrato social, ou quaisquer outras atividades econômicas".
Isso porque (1) o
domicílio tributário da Pandurata Assessoria era em uma sala fechada, na qual
os vizinhos nunca viram atividade; (2) a imobiliária que administrava o imóvel
afirmou que a empresa nunca desenvolveu atividades no local de sua sede; (3) os
gerentes da Pandurata Assessoria foram transferidos da Pandurata Alimentos, mas
desconheciam sua sede e não sofrerem alteração em seu local de trabalho; (4) as
saídas de caixa da Pandurata Alimentos, para pagar as despesas com prestações
dos serviços, eram compensadas com entradas de numerário em seu caixa
decorrente de mútuos concedidos pela Pandurata Assessoria; e (5) a Pandurata
Assessoria cedia o crédito oriundo dos contratos de mútuo para a controladora
Pandurata Participações que, posteriormente, aumentava o capital da Pandurata
Alimentos com o valor do crédito.
Conclusão
A partir de tudo o
que foi exposto, pode-se concluir que há uma convergência entre a
Solução de Consulta Cosit nº 72/2025 e a jurisprudência da 1ª Seção do Carf no
que se refere às circunstâncias concretas que, comumente, tornam abusiva a
segregação de atividades empresariais. E tais circunstâncias consistem,
principalmente, na ausência de (1) autonomia administrativa, assim
entendida quando as pessoas jurídicas estão sob a mesma gestão das atividades
operacionais; (2) autonomia patrimonial, quando, por exemplo, os custos e
despesas comuns não são compartilhados, as transações dentro do grupo são sub
ou superfaturadas e há alocação artificial de receitas e despesas entre as
empresas; e (3) autonomia operacional, caracterizada pela
incompatibilidade da estrutura física ou operacional com as atividades
desenvolvidas.
[1] ADI 2446, relatora min. Cármen Lúcia, Tribunal
Pleno, julgado em 11/4/2022, DJe-079, divulgação 26.04.2022, publicação
27/4/2022.
[2] ROCHA, Sergio André. Planejamento Tributário
e Liberdade Não Simulada: doutrina e situação pós ADI 2.446. 3ª ed. Belo
Horizonte: Casa do Direito, 2025. p. 18-21.
[3] Tema tratado no Parecer Normativo Cosit/RFB nº
04/2018.
[4] Nos termos do art. 257 do RIR/2018.
[5] Apelação/Remessa Necessária nº
5009900-93.2017.4.04.7107, Rel. Desembargador Federal Rômulo Pizzolatti, j. em
10/12/2019.
[6] Interessante notar que esses acórdãos foram,
posteriormente, anulados pelos Acórdão nº 9101-006.636, Acórdão nº 9101-006.637
e Acórdão nº 9101-006.638, reestabelecendo-se a decisão recorrida. Isso porque
o contribuinte obteve medida judicial cancelando o despacho de admissibilidade
proferido nos Acórdão nº 9101-002.793, o Acórdão nº 9101-002.794 e o Acórdão nº
9101-002.795, por ausência de "identidade obrigatória entre os
modelos/paradigmas e a decisão recorrida". No entanto, tal circunstância não
retira a importância dos "Casos Mondial" para fins de exame do entendimento do
Carf sobre segregação de atividades empresariais.
Autora: Maria Carolina Maldonado Kraljevic é doutora e
mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, conselheira da 1ª Turma da Câmara
Superior de Recursos Fiscais (CSRF) do Carf, advogada licenciada, contadora e
professora de Direito Tributário em cursos de pós-graduação e extensão
universitária.