O regime não
cumulativo do PIS e da Cofins, instituído pelas Leis nº 10.637/2002 e
10.833/2003, permite que as empresas abatam, do valor devido dessas
contribuições, créditos calculados sobre determinados custos, despesas e
encargos relacionados à sua atividade. De forma simples, esse mecanismo busca
assegurar que a tributação incida apenas sobre o valor que a empresa
efetivamente acrescenta ao produto ou serviço, evitando a chamada "tributação
em cascata", isto é, a incidência repetida de tributos sobre a mesma base ao
longo das etapas da cadeia produtiva.
Um dos pontos mais
sensíveis nesse sistema diz respeito ao momento de aproveitamento dos créditos:
devem ser considerados imediatamente na apuração do período em que o direito
surge ou podem ser utilizados posteriormente, de acordo com a gestão tributária
da empresa?
A controvérsia surge
especialmente do tratamento dado pelo Fisco Federal aos créditos não
aproveitados no momento do fato gerador. Para a administração tributária, a
única hipótese de aproveitamento posterior seria mediante retificação das
obrigações acessórias - mais precisamente, da Declaração de Débitos e Créditos
Tributários Federais (DCTF) e do Demonstrativo de Apuração de Contribuições
Sociais (Dacon), declarações eletrônicas em que as empresas informam
mensalmente à Receita Federal os valores de tributos devidos e os créditos
utilizados.
Assim, segundo o
Fisco, o aproveitamento extemporâneo só seria possível mediante a correção
dessas informações, a fim de refletir retroativamente o crédito no período em
que ele deveria ter sido escriturado.
Na prática,
entretanto, é comum que, em razão de fatores operacionais, algumas notas
fiscais, sobretudo aquelas emitidas no final do mês, não sejam registradas na
competência correspondente. O volume de operações nesse período costuma ser
elevado, o que pode dificultar o desempenho regular das atividades
administrativas. Nessas ocasiões, os contribuintes passaram a pleitear o
aproveitamento extemporâneo dos créditos, demonstrando que os documentos
fiscais não haviam sido utilizados anteriormente, afastando a alegação de
duplicidade e reafirmando, no mérito, a legitimidade do crédito.
Essa discussão tem
sido levada ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) há anos. A
tese central defendida pelos contribuintes é a de que o direito ao crédito está
assegurado pelas próprias leis do PIS e da Cofins e não poderia ser limitado
por questões meramente formais de escrituração, desde que comprovada a efetiva
realização da operação e a inexistência de aproveitamento prévio.
Embora o
entendimento do Carf tenha variado ao longo do tempo, a jurisprudência
administrativa permitia o creditamento extemporâneo, reconhecendo que a lei não
impõe prazo específico para o aproveitamento dos créditos. Nesse sentido, em
diversas decisões, tanto da Câmara Superior quanto das Câmaras ordinárias,
destacavam-se dois requisitos principais: (1) a observância do prazo de cinco
anos para o aproveitamento, a contar da constituição do crédito e (2) a
comprovação de que ele não havia sido aproveitado em outros períodos. A
exigência de retificação das obrigações acessórias, por outro lado, não era
mandatória.
São exemplos disso
os Acórdãos nº 9303-013.760 e nº 9303-012.977, da 3ª Turma da Câmara Superior,
e o Acórdão nº 3402-011.998, da 2ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 3ª Seção. O
fundamento comum nesses julgados era que não haveria prejuízo à Fazenda
Nacional quando o crédito fosse aproveitado em período posterior, tampouco
obrigação legal de retificar o Dacon ou a DCTF, configurando um direito
legítimo do contribuinte.
Súmula nº 231
Esse panorama mudou
significativamente em setembro de 2025, quando o Carf aprovou a Súmula nº 231,
segundo a qual "créditos extemporâneos de PIS/Cofins exigem DCTF/Dacon
retificadores". Os precedentes que embasaram a súmula (como os Acórdãos nº
9303-011.780 e nº 9303-013.263) sustentam que o aproveitamento extemporâneo
exige não apenas a comprovação do crédito, mas também a demonstração dos saldos
credores trimestrais de forma clara e consistente, de modo a evitar
duplicidades e assegurar a regularidade da apuração. Para o colegiado, essa
segurança só seria possível mediante a retificação das obrigações acessórias.
A edição de súmula
pela CSRF representa a consolidação de um entendimento jurisprudencial no
âmbito do conselho. Segundo o Regimento Interno do Carf, as súmulas visam
uniformizar a interpretação da legislação tributária e aduaneira, garantindo
coerência e estabilidade às decisões. Uma vez aprovada pela Câmara Superior, a
súmula adquire caráter vinculante dentro do órgão, devendo ser observada
obrigatoriamente pelas turmas ordinárias e extraordinárias, o que impede
decisões divergentes sobre o mesmo tema e, por consequência, novas discussões e
novos contornos sobre o assunto.
O problema é que a
regra fixada pelo tribunal administrativo não decorre de comando legal, mas sim
de um procedimento previsto na Instrução Normativa SRF nº 600/2005, que trata
da compensação ou ressarcimento de créditos.
Nessa perspectiva,
ao condicionar o aproveitamento extemporâneo à retificação das obrigações
acessórias, o Carf cria um requisito adicional, de natureza meramente formal,
que não encontra respaldo nas Leis nº 10.637/2002 e nº 10.833/2003. Trata-se,
portanto, de uma verdadeira virada pró-Fisco, que formaliza um controle mais
rígido sobre o creditamento e impõe ao contribuinte o ônus de seguir um
procedimento burocrático que não traz benefício concreto à arrecadação.
Essa mudança tem
implicações relevantes. Em primeiro lugar, há um claro afastamento do princípio
da verdade material, que deveria orientar o processo administrativo fiscal.
Mesmo que o contribuinte comprove documentalmente a efetiva realização da
operação e a inexistência de aproveitamento anterior, esses elementos deixam de
ser suficientes: a forma passa a prevalecer sobre o conteúdo, e a ausência de
retificação torna-se motivo autônomo para a glosa do crédito.
Em segundo lugar,
essa modificação jurisprudencial tende a aumentar o número de litígios
judiciais sobre o tema. Até então, as Câmaras do Carf, inclusive a Câmara
Superior, admitiam o creditamento extemporâneo observados o prazo quinquenal e
a inexistência de duplicidade. Ao inverter esse entendimento, o órgão força os
contribuintes a recorrerem ao Judiciário para preservar um direito que antes
era possível de ser reconhecido administrativamente.
Em terceiro lugar, a
nova orientação acentua a burocracia e eleva os custos de conformidade
tributária. A retificação das obrigações acessórias não é uma medida simples:
envolve reanálise detalhada de períodos anteriores, revisão de cruzamentos de
dados e acompanhamento técnico especializado para evitar inconsistências
futuras. Em outras palavras, a exigência imposta pela Súmula nº 231 demanda das
empresas não apenas tempo e organização, mas também planejamento minucioso e
investimento em compliance.
Desafio
Do ponto de vista
prático, a mudança impõe um desafio adicional à gestão tributária das empresas.
Para aquelas com grande volume de operações, especialmente indústrias e
distribuidoras, a necessidade de retificar declarações anteriores pode
inviabilizar o aproveitamento de créditos legítimos, tornando economicamente
desvantajosa a correção.
A reabertura de
períodos anteriores, sobretudo em operações com elevado volume documental,
implica um trabalho de reconstrução contábil e fiscal que nem sempre é viável,
seja pelo custo, seja pela perda de dados, mudanças de sistemas ou mesmo
limitações operacionais das empresas. A exigência de retificação alcança não
apenas a inclusão do crédito na apuração do mês original, mas também impõe
coerência com os saldos transportados, reflexos em compensações já realizadas,
e eventual reanálise de ajustes que tenham sido feitos à época. Isso se agrava
especialmente em situações em que os períodos originais já estão encerrados em
termos contábeis, auditados ou até mesmo fiscalizados.
Já do ponto de vista
técnico, a escrituração retroativa do crédito obriga o contribuinte a controlar
não só o lançamento extemporâneo, mas a repercussão sistêmica dessa inclusão.
Isso envolve alterações nos registros M100, M105 e M200 da EFD-Contribuições,
reconfiguração do saldo credor informado no registro 1100, e compatibilização
com o valor declarado na DCTF do respectivo mês. A depender do volume e da
complexidade das operações, essa retificação pode provocar uma cadeia de
alterações em declarações subsequentes, tornando o processo extremamente
sensível a inconsistências.
O problema central é
que, mesmo quando a documentação comprobatória do crédito é robusta e a
operação está plenamente de acordo com os critérios materiais previstos em lei,
a ausência da formalidade imposta pela retificação transforma o crédito em algo
"inexistente" aos olhos do Fisco. E.m outras palavras, há um deslocamento do
foco da veracidade da operação para a forma como ela foi (ou não) escriturada,
criando uma distorção entre o direito reconhecido em lei e sua efetiva fruição
no ambiente declaratório.
Inversão de valores
Não se ignora que o
controle sobre os créditos extemporâneos é importante para evitar abusos ou
duplicidades. No entanto, ao se exigir a retificação como condição
indispensável, mesmo diante de comprovação material inequívoca, a nova súmula
do Carf contribui para o fortalecimento de um formalismo excessivo, que não
agrega valor à fiscalização e tampouco contribui para a justiça fiscal. Pior:
cria-se um ambiente em que o direito tributário é interpretado como um sistema
de armadilhas, em que o conteúdo da operação perde força diante da sua forma de
declaração.
Essa inversão de
valores, em que a verdade material do crédito não basta, tende a tornar a
atuação administrativa menos eficiente e mais litigiosa. Em vez de permitir que
o contribuinte utilize os canais administrativos para correção e aproveitamento
de créditos legítimos, empurra-se a discussão para o Judiciário, com todos os
custos e morosidade que isso acarreta. Essa realidade evidencia um sintoma
preocupante: o modelo de controle adotado pela Receita Federal e chancelado
pelo Carf parece estar mais preocupado em manter a rigidez dos procedimentos do
que em assegurar a efetividade do sistema tributário.
Em um cenário de
crescente demanda por simplificação e racionalidade no sistema tributário, a
consolidação desse formalismo pelo Carf parece caminhar em direção oposta. A
Súmula nº 231 não apenas reforça a burocratização do regime não cumulativo,
como também mina a confiança dos contribuintes na estabilidade das decisões
administrativas.
No fim, o que se
observa é que um direito materialmente legítimo corre o risco de se perder no
labirinto das formalidades fiscais, um sintoma preocupante de que, mais uma
vez, a forma prevaleceu sobre o direito.
Referência
bibliográfica:
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10.833, de 29 de dezembro de 2003. Dispõe sobre a não cumulatividade da
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Brasília, 08 set. 2025.
MACHADO, Hugo de
Brito. Curso de Direito Tributário. 40. ed. São Paulo: Malheiros, 2019.
Autoras:
Andressa Mendes de Souza é advogada da área de Direito
Tributário, graduada e mestre em Direito pela Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF), especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de
Estudos Tributários e em Prática Processual Civil pela Escola Mineira de
Direito.
Andrezza Barreto Sena Fracetti é advogada da área de
Direito Tributário, graduada em Direito pela PUC-MG e bacharelanda em Ciências
Contábeis pela PUC-MG.