A coluna aborda a
validade da distribuição desproporcional de lucros, destacando fundamentos
legais, prática societária, orientação do DREI e respaldo do STJ.
Introdução
A distribuição de lucros entre sócios é um
tema central no direito societário, especialmente nas sociedades empresárias,
em que a persecução do lucro constitui a sua própria razão de existir. A regra
geral do CC determina que todos os sócios devem participar dos resultados e esta
partilha deve ser proporcional à participação de cada sócio no capital social1.
Contudo, a própria lei abre margem para convenções em contrário, permitindo
arranjos diferentes, desde que nenhum sócio seja totalmente excluído de
participar dos resultados. Nesse contexto, ganha relevo a distribuição
desproporcional de lucros, mecanismo amplamente adotado pelo qual os sócios
repartem os resultados em proporções distintas das respectivas participações
societárias. Este artigo examina os fundamentos jurídicos dessa prática - que
encontra fundamento no art. 997, VII do CC2 - e aborda seus
desdobramentos práticos, incluindo orientações normativas, precedente judicial,
além de recomendações práticas sob a ótica da atuação de advogados militantes
do Direito Societário.
I - A
liberdade da distribuição de lucros na sociedade limitada
O CC, no art. 997, IV, exige que o contrato
social indique a participação de cada sócio no capital social3. É a
partir daí que se presume a divisão proporcional dos resultados da sociedade
segundo as quotas representativas do capital social.
Não obstante, os arts. 1.007 e 1.008 do
mesmo diploma conferem flexibilidade a essa regra, admitindo convenção que a
excepcione, sendo lícito aos sócios pactuarem uma distribuição não estritamente
proporcional, desde que nenhum sócio seja excluído integralmente do rateio de
lucros. Cada sociedade tem autonomia para definir um arranjo de participação
nos resultados que melhor atenda às suas características e às contribuições
materiais e imateriais de cada sócio, sem necessidade de restringir-se
rigidamente à porcentagem do capital social. No Direito Societário impera a
liberdade dos sócios de celebrarem negócios jurídicos da forma que melhor lhe
convierem, o que só pode ser afastado em caso de violação de normas de ordem
pública4.
É bem verdade que nenhuma disposição
contratual pode permitir que um sócio abdique definitivamente de seus lucros em
favor de outro, pois tal pacto seria nulo por violação expressa ao que dispõe o
CC, caracterizando o chamado pacto
leonino. Todos os sócios têm direito a uma parcela mínima dos
resultados, por menor que seja sua participação ou contribuição. Contudo, não
há afronta a lei a ocorrência de distribuições episódicas que não englobem
determinado sócio ou grupo de sócios. O que a lei veda é a renúncia perpétua e
definitiva.
II -
Possibilidade de distribuição imotivada e casuística
O ordenamento não exige que a
desproporcionalidade esteja atrelada a critérios objetivos permanentes, nem que
haja periodicidade fixa nas distribuições. A própria legislação não demanda
uniformidade entre eventos distintos de distribuição de lucros. Os sócios podem
pactuar, de forma geral, essa possibilidade no contrato social, e deixar para
definir caso a caso, se assim entenderem necessário, os parâmetros exatos
conforme a conveniência do momento, em reunião ou assembleia de sócios.
Esse inclusive foi o entendimento exarado
pelo DREI - Departamento de Registro Empresarial e Integração, segundo o qual é
permitido que os sócios prevejam genericamente no contrato social a
distribuição de lucros em percentuais desiguais aos das participações
societárias. Conforme o item 4.6. da Seção I do Manual de Registro de Sociedade
Limitada (Anexo IV da IN DREI 81/20), essa distribuição desproporcional pode
ser tanto permanente quanto eventual, deliberada em cada reunião ou assembleia
de sócios5. Os sócios têm liberdade para decidir, por exemplo, que
em determinado trimestre ou evento específico os lucros serão rateados em
proporção diversa do capital, conforme critérios que julgarem pertinentes, como
geração de novos contratos nesse período, tempo dedicado de cada sócio às
atividades sociais, desempenho de áreas de negócio pelas quais cada sócio seja
pessoalmente responsável etc.
Não há obrigatoriedade legal de estipular
antecipadamente no contrato social quais serão esses eventos ou os critérios
exatos de cálculo. Na falta de previsão detalhada, as decisões concretas
poderão ser tomadas em reunião ou assembleia, respeitado o quórum previsto no
contrato, ou, se omisso este, em lei (segundo o DREI, o art. 1.071, IV c/c art.
1.076, III do CC).
Em suma, a legislação societária
brasileira, corroborada pela orientação do DREI, confere ampla flexibilidade
aos sócios para moldar a política de distribuição de lucros. Como exemplo,
pode-se incluir no contrato social uma cláusula simples: "Os lucros apurados em cada
exercício social serão distribuídos aos sócios na proporção de suas quotas ou
em proporção diversa, conforme deliberado pela maioria dos sócios em
assembleia."
III -
Precedente da 4ª turma do STJ sobre a validade da distribuição desproporcional
O Poder Judiciário vem reconhecendo a
legitimidade da distribuição desproporcional de lucros. Um marco importante foi
a decisão proferida pela 4ª turma do STJ no REsp 2.053.655/SP, relatado pelo
ministro Raul Araújo e julgado em fevereiro de 2025. Nesse caso, os sócios de
uma sociedade de consultoria, por maioria, decidiram alterar o critério de
distribuição de dividendos, que deixou de seguir estritamente as quotas de
capital e passou a ser proporcional aos dias efetivamente trabalhados por cada
sócio na empresa. Uma sócia minoritária, que participava pouco das atividades,
contestou judicialmente tal deliberação alegando violação do art. 1.008 do CC
(exclusão de lucros).
O STJ, porém, negou provimento ao recurso e
confirmou a validade do arranjo adotado. A 4ª turma entendeu que é lícita a
distribuição de lucros em proporção diversa do capital (no caso, atrelada ao
trabalho de cada sócio) desde que a mudança tenha sido aprovada pelos sócios
(via contrato ou assembleia) e que não se exclua completamente nenhum deles do
recebimento de parte dos lucros.
No julgamento, ressaltou-se que a sócia
autora da ação continuou a auferir lucros, ainda que em menor porcentagem, e
que a deliberação coletiva ocorreu dentro da margem de liberdade contratual
permitida pelos arts. 997, 1.007 e 1.008 do CC. Não houve abuso de direito ou
infração a pacto social, já que a medida visou adequar a remuneração ao esforço
de cada um, num contexto em que o capital social era diminuto e a geração de
resultados dependia fortemente do trabalho pessoal dos sócios. Assim, a Corte
Superior reconheceu que critérios não patrimoniais, como a contribuição
laborativa, podem lastrear a partilha de lucros em sociedades limitadas,
reafirmando a autonomia privada dos sócios para estipular regras de
distribuição que julgarem mais justas, dentro dos limites legais (isto é, sem
chegar ao extremo de privar um sócio de qualquer participação).
Tal decisão do STJ é significativa por
consolidar, em âmbito jurisprudencial, a possibilidade da distribuição
desproporcional como instrumento legítimo de regulação societária. Confere-se
maior segurança jurídica para sociedades, sobretudo prestadoras de serviços,
que frequentemente possuem capital social meramente simbólico e têm interesse
remunerar os sócios conforme sua contribuição efetiva no resultado. O
precedente reforça a importância de previsões contratuais claras sobre o tema e
de deliberações formais, de modo a evitar futuras contestações judiciais de
sócios dissidentes.
IV -
Deliberações em assembleia, formalização interna e arquivamento anual
Quando optarem por exercer essa faculdade,
os sócios devem formalizar adequadamente suas decisões. A distribuição
desproporcional de lucros pode ser aprovada por meio de deliberação em reunião
ou assembleia de sócios, devidamente convocada e lavrada em ata, ainda que
meramente interna.
É recomendável que a ata detalhe o
percentual ou valor atribuído a cada sócio e, se conveniente, registre a justificativa
ou critério considerado por exemplo. Essa recomendação tem por intuito tão
somente evitar eventuais controvérsias, não sendo exigido pela lei que sequer
seja consignado o motivo para tanto.
Para fins meramente exemplificativos, em
uma assembleia extraordinária, após elaboração de um balancete referente a um
determinado trimestre do exercício social corrente, sócios que possuem
participações iguais podem decidir antecipar a distribuição do lucro líquido do
exercício de forma não proporcional. Nesse exemplo hipotético, poderia constar
da ata: "Delibera-se,
por unanimidade, a distribuição de lucros referente aos meses de janeiro a
março, inclusive, do exercício social de 2025, no montante de R$ 500.000,00
(quinhentos mil reais) de forma desproporcional às participações sociais,
atribuindo-se R$ 350.000,00 ao sócio A e R$ 150.000,00 ao sócio B, tendo em
vista as receitas geradas pela sociedade em virtude de contratos captados por
cada sócio."
Embora a legislação das limitadas torne
obrigatória a realização de assembleias gerais ordinárias anuais, não há
sanções caso ela não seja realizada, diferentemente dos moldes do que ocorre
nas companhias abertas. Ainda assim, é uma boa prática de governança
corporativa que os sócios formalizem anualmente, por escrito, a ratificação de
todas as decisões de distribuição de lucros (sobretudo as desproporcionais)
ocorridas ao longo do exercício social já encerrado e procedam ao arquivamento
desse documento na Junta Comercial. A razão é simples: uma vez registrada, a
ata de assembleia torna-se oponível a terceiros, conferindo publicidade e
eficácia externa àquela deliberação6.
Assim, em situações de fiscalização ou
questionamentos, a sociedade possui prova formal de que todas as divisões de
lucros atípicas foram regularmente aprovadas pelos sócios, em conformidade com
o contrato social e a lei. Além disso, essa formalização protege os
administradores, demonstrando que agiram segundo decisão social legítima, e
previne conflitos futuros entre os próprios sócios ou sucessores.
Ressalte-se que a ausência de arquivamento
da deliberação sobre a distribuição desproporcional de lucros não configura,
por si só, infração legal, tampouco autoriza o Fisco a presumir simulação ou
aplicar sanções fiscais. Também não legitima a requalificação do ato societário
como disposição gratuita em favor do sócio que recebeu parcela superior dos
lucros, com consequente incidência do ITCMD - Imposto sobre Transmissão Causa
Mortis e Doação. Do ponto de vista fiscal, é suficiente que a distribuição esteja
devidamente refletida na escrituração contábil da sociedade e nas declarações
de ajuste anual e de imposto de renda de cada sócio, de forma integral,
coerente e transparente.
Em síntese, arquivar na Junta Comercial uma
ata anual ratificando todas as distribuições realizadas no exercício, inclusive
as desproporcionais, é apenas uma boa prática; altamente recomendável como
medida de transparência e segurança jurídica.
A título de exemplo, podem os sócios
consignar em assembleia geral ordinária: "Delibera-se,
por unanimidade, ratificar as distribuições desproporcionais de lucros
promovidas no exercício social findo, na forma das demonstrações financeiras da
Sociedade".
Conclusão
A distribuição desproporcional de lucros em
sociedades limitadas emerge, à luz do Direito brasileiro, como um instituto
válido e útil para adaptar a repartição de resultados às peculiaridades de cada
empreendimento e à contribuição efetiva de cada sócio. Fundamentada nos arts.
997, VII, 1.007 e 1.008 do CC e nas cláusulas contratuais livremente pactuadas
pelos sócios, essa prática foi recentemente chancelada pelo STJ.
O DREI também reconhece expressamente a
licitude da distribuição desigual, mas vai além ao chancelar que ocorra
inclusive de forma eventual e não previamente parametrizada, reforçando a
autonomia interna das sociedades limitadas para disciplinar seus lucros.
Por outro lado, a liberdade contratual não
é irrestrita: os sócios devem observar os limites legais e principiológicos
(isonomia, boa-fé, função social da empresa), sob pena de verem seus acordos
discutidos judicialmente. A transparência e formalidade nas deliberações
mostram-se aliadas essenciais. Elaborar cláusulas claras no contrato social,
realizar assembleias/reuniões documentadas e arquivar ao menos anualmente atas
na Junta Comercial são medidas que fortalecem a segurança jurídica das
distribuições desproporcionais, tornando-as oponíveis a terceiros e mitigando
conflitos.
Em conclusão, a distribuição
desproporcional de lucros, quando bem implementada, concilia a liberdade dos
sócios em definir o melhor arranjo remuneratório com a necessidade de
resguardar direitos de todos e cumprir as obrigações legais e fiscais. Trata-se
de uma ferramenta de planejamento societário e contratual valiosa, capaz de
incentivar a participação ativa e equilibrar a remuneração às contribuições
materiais e imateriais de cada sócio, desde que aplicada de forma fundamentada,
moderada e transparente. Assim, no ambiente empresarial atual, onde se busca
flexibilidade e eficiência, esse mecanismo se consolida como opção viável e
segura, sendo um equilíbrio entre autonomia privada e tutela dos interesses
envolvidos.
Referências
BRASIL. Instrução Normativa DREI nº 81, de
10/06/2020. Anexo IV (Manual de Registro de Sociedade Limitada), itens 4.6 e
20.3, alterados pela IN DREI nº 88/2022 e IN DREI nº 01/2024. Disponível aqui.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de
2002 (Código Civil). Artigos 997, VII; 1.007; 1.008. Disponível aqui. Acesso em: 19 nov. 2025.
Superior Tribunal de Justiça (STJ). Recurso
Especial nº 1.997.3.655/SP, Rel. Min. Raul Araújo, j. 27/02/2025. Ementa publicada
no DJe de 07/03/2025.
1 Art. 1.007. Salvo estipulação em
contrário, o sócio participa dos lucros e das perdas, na proporção das
respectivas quotas, mas aquele, cuja contribuição consiste em serviços, somente
participa dos lucros na proporção da média do valor das quotas.
Art. 1.008. É nula a estipulação contratual
que exclua qualquer sócio de participar dos lucros e das perdas.
2 Art. 997. A sociedade constitui-se
mediante contrato escrito, particular ou público, que, além de cláusulas
estipuladas pelas partes, mencionará:
(...)
VII - a participação de cada sócio nos
lucros e nas perdas;
3 IV - a quota de cada sócio no capital
social, e o modo de realizá-la;
4 Lei da Liberdade Econômica. Art. 3º São
direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento
e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do
art. 170 da Constituição Federal: (...)
VIII - ter a garantia de que os negócios
jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes
pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de
maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública;
5 BRASIL. Instrução Normativa DREI nº 81,
de 10/06/2020. Anexo IV (Manual de Registro de Sociedade Limitada), itens 4.6 e
20.3, alterados pela IN DREI nº 88/2022 e IN DREI nº 01/2024. Disponível aqui.
6 Código Civil. Art. 1.154. O ato sujeito a
registro, ressalvadas disposições especiais da lei, não pode, antes do
cumprimento das respectivas formalidades, ser oposto a terceiro, salvo prova de
que este o conhecia.
Parágrafo único. O terceiro não pode alegar
ignorância, desde que cumpridas as referidas formalidades.
Autores:
Allan Turano e Gabriel Oliveira de
Souza Voi