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Planos de saúde coletivos: uma terra sem lei


Publicada em 02/11/2018 às 09:00h 

As operadoras de planos de saúde conseguiram aquilo que as instituições financeiras tentaram sem sucesso, que foi afastar a incidência do Código de Defesa do Consumidor aos seus contratos. Por incrível que possa parecer, decorre do disposto no art. 35-G da Lei n° 9656/98 a aplicação subsidiária do Código apenas àqueles contratos estabelecidos "entre usuários e operadores de produtos".

 

Como é notório, a imensa maioria das operadoras de planos de saúde só oferece no mercado planos de saúde coletivos, intermediados por entidades de classe, empresas empregadoras e por administradoras de benefícios. Essa intermediação descarta, segundo a lei, a aplicação mesmo subsidiária do Código de Defesa do Consumidor aos contratos coletivos de planos de saúde.

 

As operadoras aperceberam-se das brechas legais e da falta de proteção dos contratantes nos planos coletivos e passaram a não firmar mais contratos individuais ou familiares. Segundo números oficiais da ANS, os consumidores de planos coletivos empresariais cresceram de 6,1 milhões, em março de 2000, para 33,8 milhões, em março de 2015. Em contrapartida, os consumidores dos planos individuais ou familiares cresceram apenas de 4,7 milhões para 10 milhões no mesmo período, praticamente o mesmo crescimento experimentado no número de consumidores dos planos coletivos por adesão, de 3,0 milhões em março de 2000, para 6,7 milhões em março de 2015.

 

A tendência de crescimento dos planos coletivos empresariais superou o dobro do crescimento do número de contratantes de planos privados de assistência à saúde, no mesmo período. Muitos contratantes de planos individuais e familiares, sob a enganosa alegação de preços mais baratos, acabaram alterando seus contratos para coletivos. Contratos tipicamente familiares, que abarcam três a quatro vidas de uma mesma família, estão sendo disfarçados como coletivos empresariais.

 

De acordo com os números da ANS, em 2014 mais de quarenta milhões de usuários eram contratantes de planos coletivos enquanto que apenas dez milhões eram contratantes de planos individuais ou familiares. A proporção já era de um usuário de plano individual para quatro usuários de planos coletivos, com tendência de diminuição do primeiro grupo e de crescimento do segundo grupo.

 

A inoperância da ANS e as brechas propositalmente inseridas na lei pelos planos de saúde já deixam desprotegidos mais de quarenta milhões de consumidores brasileiros, que podem ter seus contratos rescindidos unilateralmente, sofrer reajustes abusivos porque não limitados pela ANS e diminuições da rede credenciada, a partir de simples negociação com a pessoa jurídica que intermediou os contratos coletivos firmados pelos consumidores.

 

O parágrafo único do art. 13 da Lei n° 9656/98 veda a recontagem de carências, a suspensão e a rescisão unilateral dos contratos de planos de saúde individuais ou familiares, deixando sujeitos a essas arbitrariedades por parte das operadoras de planos de saúde os contratantes dos planos coletivos.

 

O parágrafo único do art. 16 da Lei n° 9656/98 assegura a obtenção de cópia do contrato, do regulamento e das condições gerais apenas aos contratantes de planos individuais ou familiares. Vale dizer, os contratantes de planos de saúde coletivos não têm assegurado o direito básico à informação consagrado pelo art. 6º, III do Código do Consumidor.

 

O art. 35-E da Lei n° 9656/98, no seu inciso III, veda a suspensão ou rescisão unilateral apenas dos contratos individuais ou familiares, sendo que o parágrafo 2º desse artigo sujeita à prévia aprovação da ANS apenas os reajustes dos planos individuais e familiares.

 

A falta de proteção dos contratantes de planos coletivos vem levando a inúmeras práticas abusivas, que acabam tendo que ser corrigidas no Judiciário. O Conselho Nacional de Justiça já identificou a litigiosidade envolvendo planos de saúde como um problema, a ponto do TJ-SP criar uma câmara temática visando reduzir o número desses conflitos. A despeito da judicialização já ser insuportável, está sendo cogitada a liberação dos reajustes também dos planos de saúde individuais. Se isso acontecer, a exemplo do que já ocorre com os planos coletivos, muitos consumidores serão expulsos indiretamente pela impossibilidade do pagamento das mensalidades ou passarão a contratar planos mais baratos, com menor cobertura.

 

A diminuição do número de usuários de planos de saúde repercute diretamente nas políticas de saúde pública, porque quem não tem acesso à saúde privada acaba sendo atendido pelo SUS. Assim como uma quebradeira dos planos de saúde pode inviabilizar a saúde pública, reajustes abusivos também podem inchar o já combalido sistema público de saúde.

 

Não é demais lembrar que saúde é um dos pressupostos da dignidade da pessoa humana, eleita como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil pelo artigo 1º da Constituição Federal. Sem tratamento de saúde adequado não existe vida digna. Muitos, infelizmente, não têm acesso a tratamentos de saúde adequados e quem tem, em um futuro próximo, deixará de ter, em virtude de discriminações ilícitas entre usuários de planos de saúde individuais e coletivos criados pela própria Lei n° 9656/98.

 

Consumidor, nos termos do art. 2º, "caput" da Lei n° 8078/90 é quem adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Nesse sentido os contratantes de planos coletivos também ostentam claramente a condição de consumidores, porque utilizam diretamente os serviços prestados pelas operadoras. A relação é indireta apenas na forma de contratação e de pagamento, sendo direta em relação à utilização. Negar a condição de consumidores dos usuários de planos coletivos, portanto, é uma falácia que apenas aproveita aos contratantes mais fortes dessa relação, que são as operadoras de planos de saúde.

 

Ademais disso, nada justifica sob o prisma constitucional a distinção de tratamento operada pela Lei n° 9656/98 entre contratos de planos de saúde individuais e coletivos. O serviço se não é o mesmo é muito semelhante e a condição jurídica dos usuários é rigorosamente a mesma. Sem falar que o art. 5º, XXXII da Constituição Federal coloca a defesa do consumidor como um direito fundamental, protegido por cláusula pétrea inclusive.

 

Qualquer lei que restrinja direitos de consumidores típicos é inconstitucional e assim deve ser reconhecida. Não há porquê diminuir os direitos dos contratantes dos planos coletivos em relação aos direitos dos contratantes dos planos individuais. A vulnerabilidade e a necessidade dos serviços é a mesma. Reajustes de planos coletivos sempre são "negociados" com as pessoas jurídicas que representam os consumidores sob a ameaça de rescisão unilateral dos contratos. Rescindido o contrato com a pessoa jurídica milhares e milhares de consumidores ficarão sem acesso à saúde privada, tendo que contratar novos planos de saúde, com recontagem de carências.

 

Está mais do que na hora dos operadores do direito refletirem sobre a questão dos planos coletivos no Brasil e passarem a enfrentar as práticas abusivas nos contratos coletivos de planos de saúde à luz do Código de Defesa do Consumidor, impedindo reajustes exagerados, rescisões unilaterais de contratos que deixam na rua consumidores doentes e diminuições das coberturas contratuais, que configuram também forma de aumento indireto dos planos de saúde, porque paga-se o mesmo por um serviço de qualidade bastante inferior. Não temos dúvida de que essas distinções operadas pela Lei n° 9656/98 são inconstitucionais e assim devem ser reconhecidas, em sede de ADI no controle concentrado de constitucionalidade, ou incidentalmente nos processos no controle difuso de constitucionalidade.

Por Arthur Rollo






Sobre o(a) colunista:



Arthur Rollo é advogado, mestre e doutorado em Direitos Difusos pela PUC/SP.



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