Com
variados exemplos práticos, a inteligência artificial (IA) vem mostrando a que
veio. Ela tem o poder de facilitar a vida da sociedade, simplificando trabalhos
complexos, aperfeiçoando a ação do poder público, acelerando avanços
tecnológicos e aumentando a qualidade de vida das pessoas.
A
coleta, o processamento e até a interpretação de dados estatísticos, por
exemplo, que há bem pouco tempo atrás exigiam gente, trabalho e tempo aos
montes, agora podem ser feitos ao toque de um botão, em questão de segundos.
Se
não tiver paciência para ficar reescrevendo um e-mail até a versão desejada, a
pessoa que dispõe de um aplicativo do tipo ChatGPT ou Copilot no computador
consegue com ele ter a mensagem final ao seu gosto - curta ou longa, agressiva
ou polida, informal ou formal.
Caso
ela não tenha tempo para ler algum texto longo e rebuscado, o aplicativo pode
produzir rapidamente um resumo bastante claro e confiável.
A
IA também é capaz de produzir meras curiosidades ou passatempos. No ano
passado, viralizou na internet uma fotografia construída artificialmente em que
o papa Francisco aparece trajando um estiloso casaco branco de inverno. À
primeira vista, ninguém diria que aquela imagem, de tão bem-feita, jamais
existiu na realidade.
Mas
há preocupações, e elas estão nos usos negativos e até criminosos da IA. Nesse
quesito, também não faltam exemplos.
No
início do ano, eleitores do estado de New Hampshire, nos Estados Unidos,
receberam ligações telefônicas em que o presidente Joe Biden lhes pedia que não
fossem às urnas votar nas eleições primárias estaduais. A voz era mesmo a do
mandatário americano, que busca a reeleição, mas manipulada pela inteligência
artificial para fazê-lo dizer algo que jamais saiu de sua boca.
Mensagem telefônica falsificada por IA em que o
presidente dos EUA, Joe Biden, pede aos eleitores de New Hampshire que não
votem nas primárias estaduais em janeiro de 2024
Esse
é um caso clássico da chamada deepfake.
A palavra remete às fake
news, mentiras apresentadas nas redes sociais ou nos aplicativos de
mensagem instantânea como se fossem notícias verdadeiras. No caso das fakes news, o internauta
tem a possibilidade de acreditar ou não no que está dito ou escrito.
As
deepfakes são
mais traiçoeiras porque os vídeos ou áudios, produzidos sinteticamente por IA,
se aproximam tanto da perfeição, como nos casos do papa e do presidente
americano, que por vezes é difícil duvidar da veracidade deles.
O
mau uso da IA preocupa o Brasil. Desde 2019, o Congresso Nacional discute
projetos de lei que criam regras para a inteligência artificial no país, com o
objetivo principal de proteger os cidadãos e a democracia. Sendo um tema
complexo, ainda nenhum desses projetos foi aprovado.
Pelo
fato de a lei reguladora da inteligência artificial não estar pronta, o
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) baixou no mês passado uma inédita resolução,
válida para a eleição deste ano para prefeito e vereador, que proíbe o uso de deepfake na campanha
eleitoral e obriga o áudio ou o vídeo produzido por inteligência artificial a
ser identificado claramente como tal para o eleitorado, ainda que o conteúdo
não seja malicioso.
Nas
três últimas votações, em 2022, 2020 e 2018, a Justiça Eleitoral incluiu as fake news entre as
ameaças mais sérias ao processo eleitoral. As deepfakes fizeram algumas aparições, mas
apenas de modo satírico, já que ainda eram rudimentares e a montagem saltava
aos olhos.
Para
a eleição municipal de outubro deste ano, dado o salto tecnológico, o TSE
encara as deepfakes
como a bola da vez. O político que descumprir as regras recém-baixadas terá a
candidatura derrubada. Caso se eleja, o mandato será cassado e ele ficará
inelegível.
Se
forem notificadas e não retirarem o conteúdo ilícito do ar, as big techs, empresas
responsáveis pelas redes sociais ou pelos aplicativos de mensagem instantânea,
também sofrerão punições.
Imagem
do papa Francisco gerada por inteligência artificial (Reprodução)
Nas
discussões sobre as regras para a próxima eleição municipal, o presidente do
TSE, ministro Alexandre de Moraes, afirmou que a Justiça Eleitoral agirá com
rigor para que a IA "não anabolize as milícias digitais na utilização da
desinformação para captar a vontade do eleitor e desvirtuar o resultado da
eleição".
Na
mesma ocasião, a embaixadora da União Europeia no Brasil, Marian Schuegraf,
chegou a dizer que a IA manipulada tem o poder de levar as democracias a
sucumbir.
Da
mesma forma que a falsa gravação telefônica de Joe Biden, outras deepfakes afetaram
processos eleitorais pelo mundo afora nos últimos meses.
Na
Argentina, o presidenciável Sergio Massa, derrotado por Javier Milei, apareceu
num vídeo falso cheirando cocaína. Na Eslováquia, o candidato parlamentar
Michal Simecka foi vítima de um áudio forjado em que ele falava sobre comprar
os votos da comunidade cigana.
Em
dezembro, o papa Francisco alertou para o risco de a inteligência artificial
ser desvirtuada em nome "do egoísmo, do interesse próprio, da ânsia
de lucro e da sede de poder".
Na
avaliação de Celina Bottino, diretora de projetos do Instituto de Tecnologia e
Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio), a resolução do TSE é uma espécie de
"band-aid" aplicado de forma emergencial e provisória sobre uma vulnerabilidade
muito específica enquanto o Congresso Nacional não aprova uma regulação
definitiva que seja capaz de prevenir e remediar as manipulações nas mais
diversas áreas da sociedade, e não apenas nas campanhas eleitorais.
Para
Bottino, o ideal é que as regras para a IA sejam mais abrangentes e contenham
princípios, em vez de elencarem casos muito particulares de mau uso da
inteligência artificial:
-
A tecnologia está avançando com uma velocidade cada vez maior. A cada minuto
surge uma especificidade nova. Quando a regulação da inteligência artificial
começou a ser estudada no Brasil, poucos anos atrás, por exemplo, ainda não
existia todo este boom da IA generativa [que cria conteúdo original de vídeo,
áudio, texto etc.]. Se a regulação for muito detalhada, fechada e rígida, ela
correrá o risco de se tornar datada e ineficaz muito rapidamente e não
contemplar as tecnologias que aparecerem no futuro.
O
consultor legislativo do Senado Frederico Quadros D'Almeida, que atua na área
de telecomunicações, concorda:
-
Considerando a complexidade da questão e as diferentes aplicações envolvidas,
uma regulamentação essencialmente principiológica pode ser uma solução mais
simples para uma abordagem geral, combinada com regras prescritivas, dirigidas
a cada tipo de aplicação. Dessa forma, conseguem-se simultaneamente uma
coerência normativa global, garantida pelos princípios gerais, e a necessária
granularidade, diante da multiplicidade de situações envolvidas. De todo modo,
provavelmente também serão necessárias normas específicas, que abordem de modo
mais detalhado sistemas particulares de inteligência artificial.
D'Almeida
foi integrante de uma comissão de juristas que o Senado criou em 2022 para
discutir a inteligência artificial, ouvir especialistas e analisar os projetos
de lei em pauta para depois sugerir ao Congresso um anteprojeto que
contemplasse os pontos mais necessários.
Foram
considerados projetos do deputado federal Eduardo Bismarck (PDT-CE) e dos
senadores Styvenson Valentim (Podemos-RN) e Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB).
No
ano passado, o texto da comissão de juristas foi apresentado como projeto de
lei pelo senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado. Atualmente, o PL
2.338/2023 está em análise numa comissão dedicada exclusivamente ao tema, a
Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial no Brasil, que prevê
concluir seus trabalhos e votar o projeto ainda neste semestre.
-
Um dos principais objetivos do projeto é estabelecer direitos e proteger o elo
mais vulnerável em questão, a pessoa natural que já é diariamente impactada por
sistemas de inteligência artificial - explica Pacheco.
A
Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial no Brasil também
estuda um projeto alternativo apresentado pelo senador Astronauta Marcos Pontes
(PL-SP).
O
presidente da comissão e o relator do projeto são, respectivamente, os
senadores Carlos Viana (Podemos-MG) e Eduardo Gomes (PL-TO). Viana acrescenta:
-
Outra preocupação é não tolher a inovação e o desenvolvimento tecnológico. Se
criarmos responsabilidades e riscos exagerados e riscos para os
desenvolvedores, eles sairão do Brasil e migrarão para algum país onde a
legislação seja mais favorável, o que acabará fazendo com que compremos a
tecnologia do exterior. De qualquer forma, a dignidade humana e a possibilidade
de o Judiciário agir [em casos de abuso] são pontos inegociáveis. Vamos
entregar ao país um projeto moderno.
Na
avaliação de Fernanda Rodrigues, coordenadora de pesquisa do Instituto de
Referência em Internet e Sociedade (Iris), a proteção da dignidade humana é um
ponto inegociável na regulação da IA. Segundo ela, tanto os desenvolvedores de
IA quanto os utilizadores terão que seguir parâmetros bem claros nesse sentido
e, em caso de desobediência, deverão ser responsabilizados:
-
Pensemos no caso do reconhecimento facial para fins de segurança pública nas
ruas, nas estações de metrô, nos estádios de futebol - Rodrigues exemplifica. -
A inteligência artificial será utilizada de forma maléfica se ela for
programada para repetir e reforçar aquele mesmo viés historicamente racista do
policiamento humano. O policiamento preditivo via IA poderá intensificar a
prisão de uma parte da população que já sofre com o encarceramento injusto e em
massa. Precisaremos exigir que os algoritmos sejam transparentes.
Essa,
aliás, é uma das preocupações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que desde
2020 tem uma resolução que permite o uso da inteligência artificial para
acelerar os processos e as tomadas de decisão desde que se tomem cuidados para
evitar erros de julgamento decorrentes de preconceito.
Segundo
Fernanda Rodrigues, a recente explosão da inteligência virtual exige que o
poder público comece a investir de forma pesada na educação digital da
população, a partir da escola, para que as pessoas aprendam a suspeitar do
material disponível na internet e até identificar as deepfakes, de modo a não
serem enganadas.
Trecho
do regulamento da União Europeia aprovado na semana passada sobre o uso da
inteligência artificial (Reprodução)
Na
semana passada, o Parlamento Europeu aprovou a primeira lei mundial de regulação
ampla da inteligência artificial. Cada uso específico da IA foi enquadrado num
nível diferente de risco para o ser humano, com punições proporcionais a cada
risco. A lei, que valerá nos 27 países da União Europeia, tem semelhanças com o
projeto em análise no Senado.
Fonte: Agência
Senado