A atividade
empresarial no Brasil encontra diversos obstáculos (fiscais, administrativos,
jurídicos, contábeis etc.). Ainda assim, o sonho de muitos brasileiros é ser
"dono do próprio negócio".
Pesquisa realizada
pela Global Entrepreneurship Monitor (GEM) em 2021 - uma iniciativa do Sebrae
em parceria com o Instituto Brasileiro da Qualidade e Produtividade (IBQP) -
indicou que, entre as 47 nações avaliadas naquele ano, o Brasil figurava em
quinto lugar entre os países que demonstraram maior nível de empreendedorismo
total.
Tipos societários
Nessa busca pela tão
sonhada constituição de uma empresa, é possível que as pessoas se associem, se
reúnam com um propósito comum, o que no Direito Empresarial se denomina de
sociedade empresária.
No Brasil há
diversas formas de sociedades empresárias, podendo ser citadas, como mais
comuns, a sociedade simples, a sociedade limitada, a sociedade anônima, a cooperativa
e a sociedade de advogados.
Dentre todas, a
modalidade mais comum no Brasil é a sociedade limitada, que constitui mais de
90% dos registros nas Juntas Comerciais. Nesse tipo societário, os deveres da
PJ não se confundem com os de seus sócios. Dívida da empresa não é dívida
pessoal do sócio.
Desconsideração da
personalidade jurídica
No entanto, a
prática judiciária confronta-nos cotidianamente com um dos institutos mais
eficazes - e por vezes controversos - na execução de obrigações cobradas de
empresas/companhias: o da desconsideração da personalidade jurídica.
Com a finalidade de
abranger o patrimônio pessoal dos sócios ou acionistas da empresa ou da
companhia, a medida redireciona os esforços executórios àqueles que
inicialmente não compunham o polo passivo da cobrança judicial: as pessoas que
compõem a empresa.
Na dogmática
nacional, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica (disregard
doctrine) encontra duas ramificações que impõem maior ou menor exigência quanto
à verificação dos requisitos que a autorizariam.
A teoria maior da
desconsideração, fundamentada no artigo 50 do Código Civil e no caput do artigo
28 do Código de Defesa do Consumidor, exige, para o atingimento do patrimônio
pessoal dos sócios/acionistas, a demonstração de abuso da personalidade, o que
ocorre quando há desvio da finalidade da PJ ou confusão patrimonial entre os
bens pessoais dos sócios/acionistas e os bens da pessoa jurídica.
Vê-se, assim, que é
uma desconsideração fortemente motivada por ilicitudes praticada pela PJ, que
estão conceituadas e definidas na lei civil. Ainda, ressalta-se que nem todos
os sócios poderão ser atingidos pela desconsideração, devendo o ataque
patrimonial restringir-se aos administradores da PJ ou aos sócios que tenham
sido beneficiados direta/indiretamente pelas ilicitudes cometidas pela empresa.
Já a teoria menor,
com lastro no artigo 28, §5º do Código de Defesa do Consumidor, não exige
tamanha rigidez de requisitos, uma vez que a mera constatação da insolvência da
pessoa jurídica, por exemplo, é capaz de determinar sua desconsideração para
atingir patrimônio pessoal dos sócios.
Veja que, nesta
hipótese, inexiste a necessidade de comprovar eventual abuso ou desvio,
justamente para proteção do consumidor diante de sua vulnerabilidade nas relações
de consumo.
Impacto da Covid
Embora o ordenamento
jurídico pátrio tenha adotado a teoria maior como regra, fato é que ninguém
presumia os reflexos que a pandemia do Covid-19 poderia acarretar nas relações
empresariais a curto, médio e longo prazo.
De acordo com os
dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no primeiro
semestre em que a doença assolou o país, ou seja, até junho de 2020, cerca de
716.372 empresas encerraram suas operações, sendo 99,8% delas de menor porte.
Já no ano de 2023,
estudos apontam um aumento de 70% nos pedidos de recuperação judicial,
evidenciando que, mesmo após o término da pandemia, as pessoas jurídicas e
sociedades empresárias permanecem em crise financeira e com dificuldades de
manutenção de suas atividades, e consequentemente, pagamento de suas dívidas.
Diante da crise
econômica desencadeada pela pandemia, diversos Tribunais de Justiça passaram a
considerar ainda mais o contexto fático e suas peculiaridades em conjunto com
as provas, ainda que mínimas, para comprovar a existência do desvio de
finalidade ou confusão patrimonial dos sócios/acionistas.
Inclusive,
considerando o aumento da vulnerabilidade dos credores, principalmente os de
natureza trabalhista, o ordenamento jurídico passou a autorizar a continuidade
da tramitação do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, ainda
que em paralelo com o processo de recuperação judicial da empresa, em busca da
celeridade processual, tendo em vista que a incerteza acerca da satisfação do
crédito.
Se por um lado, a
crise financeira contribuiu para o aumento das decisões de deferimento da
desconsideração da personalidade jurídica da sociedade devedora, por outro
lado, esta expôs os sócios a responsabilidades antes dificilmente a eles
atribuídas, uma vez que, com a maior aplicação do instituto aqui discorrido, os
sócios passaram a responder com seus patrimônios pessoais por dívidas da PJ com
mais frequência, surgindo assim a necessidade de adoção de medidas mais severas
de gestão para proteção de seus ativos pessoais.
Observa-se,
portanto, a mitigação da teoria maior, ou ainda, a "fusão" das teorias maior e
menor da desconsideração da personalidade jurídica, visando buscar um
equilíbrio entre a proteção dos interesses dos credores, sem, contudo, comprometer
a segurança jurídica e a viabilidade econômica das empresas.
Nesse contexto,
conclui-se que a pandemia do Covid-19 trouxe diversos desafios significativos e
inéditos para o campo da desconsideração da personalidade jurídica no Brasil,
refletindo-se na necessidade de adaptação das decisões judiciais, agora mais
flexíveis.
A questão ainda
encontrará farto desenvolvimento jurisprudencial, mas a verdade é que, sob
qualquer ângulo de análise, a responsabilidade patrimonial e a boa-fé objetiva
ganharam lugar de destaque nas relações privadas, o que indica um ganho
substancial para o aperfeiçoamento da prática contratual brasileira.
Autoras:
Nathalia
Issa, é advogada no Mandaliti.
Beatriz
Tarda, é advogada no Mandaliti.