Os entusiastas
talvez chamem de "soberania 2.0" o resultado da necessária adaptação do
conceito original, em razão do surgimento do bitcoin, a partir da tecnologia
blockchain.
Falar sobre
blockchain não pode ser visto como uma novidade absoluta. A tecnologia que
viabilizou a existência do bitcoin em 2009 é conhecida desde a virada do
milênio e teve disseminação exponencial nos últimos anos. O tema está presente,
também, nos espaços de governança pública. Veja alguns referenciais:
- 2019: a Receita
Federal instituiu a IN 1.888, disciplinando a declaração de criptoativos;
- 2021: o Conselho
Nacional de Justiça publicou a Resolução nº 423, inserindo no conteúdo
programático do concurso da magistratura o Direito Digital e as novas
tecnologias: criptomoedas, blockchain e algoritmos;
- 2022: entrou em
vigor no Brasil o marco legal dos criptoativos (Lei nº 14.478).
O que torna o
assunto atual e relevante é a crescente adoção do bitcoin como forma de
pagamento ou reserva monetária, tendência que pode resultar no esvaziamento
gradual das moedas fiduciárias emitidas pelos bancos centrais dos Estados.
O básico sobre
bitcoin e blockchain
O bitcoin é a
"criptomoeda corrente" de uma rede que valida transações de modo público
através da tecnologia blockchain. Trata-se de um sistema de verificação de
pagamentos capaz de certificar que uma quantidade de moeda foi adquirida e
ainda não foi utilizada, assim resolvendo o chamado problema do gasto
duplo, próprio aos conceitos fundamentais da contabilidade.
A tecnologia
blockchain ("corrente de blocos", em tradução livre) promove o armazenamento
completo dos dados produzidos pelas sucessivas transferências de criptoativos e
envia instantaneamente cópia dos seus registros para todos os computadores
integrantes da rede, que passam a atuar como unidades certificadoras
redundantes. Esses dados são agrupados em blocos com determinada capacidade de
armazenamento, os quais são conectados entre si em ordem cronológica por meio
de uma cadeia de chaves eletrônicas (função hash), formando uma corrente
de dados verificáveis.
Na prática, a
blockchain desempenha digitalmente o papel antes reservado ao livro razão, pois
consiste em um registro público de informações que não podem ser alteradas.
Nesta analogia, os sucessivos blocos de dados correspondem às páginas do livro.
A diferença está no
fato de que se trata de uma tecnologia descentralizada, que dispensa um
local para o depósito deste "livro razão digital". O armazenamento se dá por
meio da execução simultânea do mesmo software por milhares de computadores, que
se comunicam diretamente, com interações ponto a ponto ("peer-to-peer" ou
P2P), sem a necessidade de qualquer estrutura ou instituição intermediária.
O bitcoin, em
específico, é a criptomoeda resultante da operação contínua do software
chamado Bitcoin Core, um programa aberto que opera há mais de 15 anos sem
intercorrências. As operações sincronizadas do sistema bitcoin formam uma
grande rede de nós em um ambiente onde cada computador conectado representa a execução
de um nó - unidade básica da tecnologia blockchain.
O bitcoin não é uma
empresa. É um protocolo aberto. Qualquer pessoa que deseje participar da rede
bitcoin pode instalar o programa em seu computador e passar a ser mais um nó do
sistema, desde que a sua máquina atenda aos requisitos técnicos [1].
Em síntese, trata-se
de um novo poder computacional que permite realizar transações
certificadas por meio de um sistema descentralizado e público - porém
anônimo, já que os endereços das operações (chaves públicas do pagador e do
recebedor) possuem o formato de códigos.
Uma característica
relevante do bitcoin é a sua escassez. O sistema tem a quantia limitada - e
imutável - de 21 milhões de unidades, que, por sua vez, são compostas por cem
milhões de frações, razão pela qual as operações observam 8 casas decimais após
a vírgula: 1,00000000 BTC. Na visão de Saifedean Ammous, "o bitcoin é o
primeiro exemplo de um bem digital que é escasso e não pode ser reproduzido
infinitamente", isso porque é um bem digital "cuja transferência impede que ele
seja [continue sendo] de propriedade do remetente" [2].
Apesar da alta
volatilidade e da cotação inicial desprezível, muitas pessoas enxergaram no
bitcoin uma solução eficiente e confiável para suas transações, manifestando
disposição para recebê-lo em troca de produtos ou serviços. Sem demora, cada
vez mais usuários passaram a ter interesse em trocar suas moedas nacionais pelo
criptoativo - comprar bitcoins - para uso ou reserva monetária, o que desencadeou
sua expressiva valorização.
Qual a relação entre
bitcoin e soberania?
Vários aspectos das
criptomoedas interessam ao olhar jurídico. Alguns exemplos:
- o Direito Penal
examina o uso das criptomoedas na prática de lavagem de dinheiro;
- o Direito
Tributário analisa a incidência fiscal sobre o patrimônio e a renda
provenientes de criptoativos; e
- o Direito das
Sucessões analisa a transmissão hereditária de criptoativos.
A reflexão proposta
nesta coluna diz respeito ao Direito Constitucional e aos atributos do Estado
soberano, especialmente no que diz respeito ao monopólio da emissão de moeda.
A soberania
A soberania pode ser
definida como o traço que caracteriza o poder supremo do Estado, dentro do
território nacional, para criar regras e governar. De acordo com o conceito de
soberania, a ordem interna é exercida pelos poderes juridicamente constituídos,
sem qualquer interferência externa, ressalvadas as relações horizontais de
Direito Internacional, sempre consentidas.
Um dos pressupostos
da soberania é o princípio da subordinação, segundo o qual a população
reconhece e aceita o fato de que o território do Estado coincide com o espaço
de validade de uma determinada ordem jurídica, aplicada com exclusividade por
uma personalidade estatal. As nações soberanas criam os seus próprios sistemas
políticos, normativos e também monetários, tudo a partir das instituições de
Estado.
Para a concretização
dos seus objetivos, os Estados soberanos exercem diferentes tipos de poderes:
estabelecem leis, exercem a jurisdição, comandam a força policial e, no que
tange ao sistema financeiro, detêm o monopólio da emissão da moeda e regulam as
entidades que operam no mercado.
O desafio
Os sistemas
monetários estatais foram surpreendidos pelo surgimento da tecnologia
blockchain, que, como visto acima, dispensa a presença de uma instituição
intermediária para a realização de transações financeiras, permitindo que
o pagador e o recebedor transfiram recursos diretamente entre si, sem a
necessária presença do Estado. O bitcoin é o primeiro e mais notável caso de
uso dessa tecnologia.
Diversos países
estão em plena corrida regulatória, tentando conceber soluções normativas
capazes de manter as operações com criptomoedas sob seu controle. É neste
contexto que o marco legal dos criptoativos no Brasil dispõe sobre as
"prestadoras de serviços de ativos digitais" (Lei nº 14.478/2022, artigo 5º). A
Receita Federal, por sua vez, está em vias de instituir nova regulamentação
para criptoativos [3].
O desafio está no
fato de que, de maneira inédita, a tecnologia blockchain permite que o titular
da criptomoeda realize a autocustódia de seus ativos, o que
corresponde ao saque da moeda e ao correspondente armazenamento pessoal -
online ou por meio de um dispositivo físico. O efeito prático disso é a
exclusão do Estado das trocas econômicas.
Segundo Gustavo
Cunha, "a capacidade de ter custódia tem implicações significativas,
especialmente em relação à regulação e aos controles tributários estabelecidos
pelos Estados".[4] Por sua vez, Álvaro María afirma
que "o Bitcoin infligiu uma ferida no seio do próprio poder estatal: a perda do
direito exclusivo de emitir moeda - algo que afeta, de uma forma ou de outra,
toda a vida política" [5].
Linhas de
tensionamento
Uma análise
despretensiosa sugere que, a depender da inclinação do titular da criptomoeda,
existem duas possíveis linhas de abordagem sobre o tensionamento entre as
características da blockchain e os elementos próprios à soberania estatal.
A primeira linha é
a conservadora, observada pelo titular que está plenamente disposto a
conviver com o controle estatal sobre seu patrimônio e renda. Essa pessoa
demonstra subordinação às instituições de Estado, mantém seus criptoativos sob
a custódia de instituições reguladas ou, no caso de fazer a autocustódia,
promove a respectiva declaração.
A segunda linha é a reacionária,
adotada por quem não pretende assumir voluntariamente compromissos relacionados
à declaração de patrimônio e renda. Esta pessoa enxerga nas criptomoedas uma
forma de ocultação patrimonial garantida pela criptografia, com a consequente
blindagem patrimonial, inclusive contra o próprio Estado. Ao realizar a
autocustódia, esta pessoa busca evadir-se do controle estatal, seja no que diz
respeito à incidência tributária, seja no que diz respeito à sujeição de seu
patrimônio aos mecanismos de constrição, como o bloqueio judicial.
Proliferam na
internet discursos entusiastas da linha reacionária, enfatizando aspectos como
o anonimato e a inconfiscabilidade dos criptoativos. É um discurso atraente,
pois, de um modo geral, os pesados controles estatais não agradam a ninguém.
Porém, esta linha carrega todos os riscos próprios aos caminhos reacionários.
Conclusão
O tema das
criptomoedas ainda está longe de ser dominado pela população em geral. Fora dos
círculos especializados, os debates são vagos e desprovidos de maior rigor
técnico. Entre investidores individuais, quase tudo se resume à gestão de
riscos financeiros.
O profissional da
área jurídica, de um modo geral, também não é um especialista em criptoativos.
As exceções costumam estar entre tributaristas e penalistas da área econômica.
São raras as pesquisas sobre os reflexos da tecnologia blockchain nos elementos
que compõem a teoria do Estado.
Embora o bitcoin
esteja cada dia mais consolidado, não se pode negar que é um sistema
recente. As instituições de Estado estão apenas começando a assimilar as
mudanças decorrentes da tecnologia blockchain - e tudo indica que os
próprios Estados precisarão adotá-la em algum momento.
Gustavo Cunha afirma
que "as discussões atuais envolvem uma mudança nos papéis do sistema
financeiro, uma aproximação maior dos Bancos Centrais com o público, a criação
de moedas privadas que poderiam colaborar ou competir com as moedas
governamentais" [6].
É possível que, no
futuro, estes dias sejam lembrados como o início de uma nova era das
relações econômicas, quando o bitcoin ganhou adesão planetária e obrigou os
teóricos a revisarem a estrutura do Estado - pelo menos no que diz respeito a
um dos alicerces da soberania: o monopólio da emissão de moeda.
[1] Publicação
didática sobre o protocolo bitcoin: https://blog.areabitcoin.com.br/bitcoin-core/
[2] AMMOUS,
Saifedean. O padrão bitcoin: a alternativa descentralizada ao banco
central. 3ª ed. Campinas: Editora Axia, 2024, p. 222.
[3] https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/noticias/2025/janeiro/receita-federal-recebe-contribuicoes-para-a-nova-regulamentacao-de-criptoativos
[4] CUNHA,
Gustavo. A tokenização do dinheiro: como blockchain, stablecoin, CBDC e o
DREX mudaram o futuro. São Paulo: Actual, 2024, p. 41.
[5] MARÍA,
Álvaro. A filosofia do bitcoin. São Paulo: Faro Editorial, 2024, p. 90.
[6] Obra
citada, p. 57.
Autor: Charles Giacomini é juiz federal em
Florianópolis (SC), mestre em Ciência Jurídica, especialista em Direito Público
e professor de Direito Tributário, Direito Financeiro, Direito Econômico e
Direito Internacional.