Nota
M&M: Saiba mais sobre a Reforma Tributária https://www.mmcontabilidade.com.br/Materia.aspx?id=23939
A Sociedade em Conta
de Participação (SCP) é, por natureza, uma figura jurídica sui generis do
direito empresarial brasileiro. Sem personalidade jurídica própria (Código
Civil, artigo 993), constituída por contrato particular e sem necessidade de
registro público (artigo 992), sua operacionalização concentra-se na figura do
sócio ostensivo, que atua em nome próprio e sob sua responsabilidade exclusiva.
O sócio participante, por sua vez, permanece oculto na relação externa e, via
de regra, não se vincula juridicamente aos credores da sociedade.
Historicamente, a
SCP tem sido uma alternativa eficiente para negócios que buscam uma estrutura
flexível, com menor complexidade formal e, especialmente, com benefícios
fiscais derivados da inexistência de personalidade jurídica e da imputação
tributária concentrada no sócio ostensivo.
Contudo, a
promulgação da Lei Complementar nº 214/2025 - norma que inaugura a
regulamentação do novo sistema tributário brasileiro, instituindo o Imposto
sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) -
impõe uma nova lógica ao regime das SCPs, ao criar a possibilidade de sua opção
pelo regime regular de apuração de tributos, com consequências significativas
sobre sua configuração fiscal e patrimonial.
Nos termos do artigo
26, inciso III, da LC nº 214/2025, as SCPs estão, por definição legal,
excluídas da condição de contribuintes do IBS e da CBS, salvo se optarem, de
forma expressa, pelo chamado "regime regular" previsto no §1º do mesmo
dispositivo. A redação legal é clara:
"Art. 26. Não são
contribuintes do IBS e da CBS [.] III - sociedade em conta de participação;
§1º Poderão optar pelo regime regular do IBS e da CBS [.] I - as entidades sem
personalidade jurídica de que tratam os incisos I a III do caput deste artigo;
§4º Caso a sociedade em conta de participação [.] não exerça a opção pelo
regime regular [.], o sócio ostensivo ficará obrigado ao pagamento do IBS e da
CBS quanto às operações realizadas pela sociedade, vedada a exclusão de valores
devidos a sócios participantes."
Regimes da SCP
Em suma, a SCP pode
manter-se sob o regime tradicional - com o sócio ostensivo respondendo
integralmente pela tributação incidente - ou pode optar pelo novo regime
regular, no qual ela própria será responsável pelo recolhimento dos tributos
sobre consumo.
A possibilidade de
equiparação da SCP a uma pessoa jurídica para fins de responsabilidade
tributária suscita importantes questionamentos jurídicos e práticos.
Primeiramente, do
ponto de vista da apuração de tributos federais, o entendimento consolidado
pela Instrução Normativa RFB nº 1700/2017 (artigo 6º, §§1º e 2º) determina que
o sócio ostensivo é o responsável exclusivo pela apuração e recolhimento do
IRPJ e da CSLL relativos às operações da SCP. A jurisprudência, a seu turno, é
uníssona em afastar a legitimidade ativa da SCP em ações fiscais (v.g., TRF3,
ApCiv nº 5007502-78.2021.4.03.6100).
A adesão ao regime
regular do IBS e CBS cria, nesse contexto, uma dissonância sistêmica. De um
lado, a SCP passa a ser contribuinte direta de tributos sobre consumo; de outro,
permanece representada fiscalmente pelo sócio ostensivo em matéria de tributos
sobre lucro. Essa bipartição de responsabilidades pode gerar distorções
operacionais, dúvidas sobre a gestão de receitas, insegurança quanto à
titularidade passiva de obrigações acessórias e conflitos sobre legitimidade
processual ativa e passiva em litígios fiscais.
Adicionalmente, a
atribuição da condição de contribuinte à SCP, mesmo sem personalidade jurídica,
pode ensejar incertezas quanto à autonomia do patrimônio especial previsto no
artigo 994 do Código Civil e à possibilidade de responsabilização do acervo
comum da SCP por obrigações pessoais do sócio ostensivo ou vice-versa,
especialmente em cenários de confusão patrimonial, redirecionamento de
execuções fiscais e eventual desconsideração da personalidade jurídica por
analogia.
Mitigar riscos
tributários e patrimoniais
Diante desse novo
panorama normativo, é necessário estabelecer diretrizes jurídicas e contábeis
capazes de mitigar os riscos tributários e patrimoniais decorrentes da escolha
(ou não) pelo regime regular do IBS e da CBS.
A primeira medida
recomendável é a formalização contratual robusta da SCP, com cláusulas claras
quanto à responsabilidade pelas obrigações fiscais, à titularidade dos ativos e
receitas, à governança interna e à repartição de resultados. Recomenda-se,
ainda, a previsão de mecanismos de resolução de conflitos e de auditoria
interna que garantam transparência e rastreabilidade de operações,
especialmente nos casos em que a SCP optar pelo regime regular.
Em segundo lugar,
deve-se considerar a instituição de escrituração contábil autônoma, ainda que a
SCP mantenha-se fora do regime regular, como forma de segregar contabilmente os
resultados e bens afetos à sociedade. Tal medida será essencial para evitar a
confusão patrimonial e defender a autonomia do patrimônio especial em eventuais
execuções fiscais ou demandas de responsabilidade solidária.
A terceira solução
diz respeito à revisão das estruturas societárias e contratuais, especialmente
para SCPs que operem em setores de alto risco ou com elevado volume de
transações. Em determinados casos, poderá ser mais eficiente a constituição de
uma sociedade com personalidade jurídica plena, como uma sociedade limitada com
acordo de quotistas simulando a estrutura da SCP, o que permitiria maior
segurança institucional e padronização de obrigações fiscais.
Ademais, os
profissionais jurídicos e contábeis deverão elaborar memorandos de orientação
sobre os impactos da LC 214/2025, apresentando cenários comparativos entre as
hipóteses de adesão ou não ao regime regular, considerando não apenas o aspecto
tributário, mas também o impacto no relacionamento com investidores,
fornecedores e órgãos de fiscalização.
Atuação com as
Fazendas Públicas
Por fim, propõe-se a
atuação preventiva junto às Fazendas Públicas, com o protocolo de consultas
formais, quando necessário, sobre a aplicação das novas regras à SCP em
operações específicas, a fim de consolidar uma posição fiscal segura e evitar
autuações futuras baseadas em interpretações divergentes da norma.
A inserção
facultativa da SCP no regime regular da LC 214/2025 representa uma inflexão no
tratamento tributário das entidades despersonalizadas no Brasil. A depender da
escolha dos sócios, a SCP poderá adquirir status de contribuinte direto do IBS
e da CBS, o que impõe novos encargos formais e materiais.
Tal modificação,
contudo, deve ser analisada com a máxima prudência, sob pena de comprometer a
eficiência fiscal, a autonomia patrimonial e a segurança jurídica que tradicionalmente
caracterizavam essa figura societária. A decisão sobre a adesão ao regime
regular deve ser precedida de rigorosa análise técnico-jurídica, com atenção
aos princípios da neutralidade, simplicidade e previsibilidade fiscal.
Diante do cenário em
constante mutação e do novo ciclo de fiscalização e regulamentação que
certamente se seguirá à reforma tributária, a SCP passará a demandar maior
sofisticação jurídica e contábil, sob pena de ver esvaziada sua atratividade
como instrumento de estruturação empresarial.
Autor: Leonardo Roesler. Advogado tributarista e sócio
do RCA Advogados, conselheiro certificado pelo Instituto Brasileiro de
Governança Corporativa, mestre em Administração e Finanças pela Ohio University
e especializado em Direito Empresarial e Direito Tributário pela Fundação
Getúlio Vargas (FGV).