O
presente artigo é produzido a pretexto dos intensos debates que vêm sendo
promovidos para identificar quem figurará na relação processual objeto de ação
exacional ou antiexacional e, consequentemente, em qual jurisdição judicial as
demandas tramitarão, diante da alteração das regras do sistema constitucional
tributário que formataram o imposto sobre bens e serviços (IBS), forjado pela
fagocitose [1] entre o imposto sobre a circulação de mercadorias e prestação de
serviços de transporte interestadual e comunicação (ICMS) e o imposto sobre
serviços de qualquer natureza (ISS), e a contribuição sobre bens e serviços
(CBS), fusão da contribuição ao PIS e a Cofins.
Preleciona
Rodrigo Dalla Pria que a "dedução, em juízo, de uma pretensão processual
qualquer será sempre precedida da afirmação de uma lesão ou ameaça de lesão a
direito subjetivo que lhe sirva de suporte", o que autoriza concluir que
qualificado o processo de tributário, o conflito gerador instala-se a partir da
relação material que lhe é pano de fundo, portanto, a relação tributária (ou
obrigação tributária) [2].
Desta
forma, para definir quem é parte legítima de uma ação tributária, seja ativa ou
passivamente, crucial identificar quem são os sujeitos de direito que compõem a
obrigação tributária, critério do qual não escapa o IBS e a CBS [3].
No que
toca à instituição da regra-matriz de incidência tributária do IBS e da CBS,
houve a centralização da competência [4] legislativa na pessoa política da
União, a ser materializada por meio do veículo introdutor lei complementar
editada pelo Congresso Nacional [5].
Contudo,
não foi o que se deu quanto à aptidão para fiscalizar, constituir a obrigação
tributária, exigi-la e executá-la (em suma arrecadar [6]), uma vez que essas
atribuições são outorgadas aos sujeitos que o ordenamento jurídico dota de
capacidade tributária ativa [7]; e dotar o ente de capacidade tributária ativa
significa que outorgar-lhe a potência de figurar como sujeito ativo da
obrigação tributária.
Na
CBS, o sujeito ativo, é a União (artigo 195, V, CF/1988 já transcrito em nota
de rodapé), e no IBS, os estados, municípios e Distrito Federal, diante do que
prescreve o artigo 156-B, § 2º, inciso V da Constituição de 1988 [8].
Ora,
se a definição da parte legítima de uma ação tributária supõe a identificação
dos sujeitos que compõem a obrigação tributária, qualquer reflexão a respeito
deve partir, portanto, da identificação dos seus sujeitos. Assim, saber quem é
o ente que centraliza as entradas dos tributos arrecadados é fator irrelevante
para definir quem participa da relação tributária e, consequentemente,
identificar a legitimidade ordinária ad causam.
Isso é
decisivo, pois, o conflito de interesses surge justamente entre esses sujeitos,
o ativo, dotado do direito subjetivo ao objeto dessa relação, e o passivo,
abastecido do dever jurídico de prestá-lo e somente eles podem figurar na
relação processual [9].
Na
CBS, não há dificuldade alguma em identificar que é a União a legitimada ad
causam para figurar no processo tributário (exacional ou antiexacional [10]),
já que é ela quem compõe a relação material da contribuição.
No
IBS, a identificação do sujeito ativo da obrigação tributária é mais complexa
porque sua identidade supõe conhecimento acerca (1) do tipo de operação, se com
bens e direitos ou com serviços, (2) se se trata de importação de bens e direitos,
ou serviços, somado à identificação do critério espacial da ocorrência desses
fatos jurídicos (3) se o local em que se materializou a operação ou o serviço
ou (4) o do destino da operação ou do serviço.
Fator esse que de maneira alguma, impede ou inviabiliza a definição do
sujeito ativo da obrigação tributária do IBS.
Isso
porque, a sujeição ativa do IBS é identificada a partir da constituição do fato
e da relação jurídica, cujo ato será formalizado em favor do estado, do
município ou do Distrito Federal (tratando-se de lançamento por homologação) ou
pelo estado, município ou Distrito Federal (diante de hipótese de lançamento de
ofício), em que se concretizou a materialidade do imposto.
A
partir de nossa premissa de que o conflito se instala entre os sujeitos
compositivos da relação, materializada no referido ato, forçoso concluir que
legitimados ad causam são aqueles conectados nesse vínculo obrigacional.
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[1] Fagocitose é expressão da Biologia que
aponta para o processo segundo o qual as células englobam e absorvem material
externo a fim de neutralizá-lo ou eliminá-lo, para proteger o organismo como um
todo. Exatamente o que se deu no IBS: resultado da fusão de dois impostos (ICMS
e ISS) que os eliminou a pretexto de proteger o ordenamento jurídico em sua
perspectiva tributária sobre o consumo.
[2] In
Direito Processual Tributário. 1ª edição. São Paulo: Noeses, 2020, p. 58.
[3]
Esse o entendimento de Paulo Cesar Conrado: "para detectar se autor e réu
encontram-se legitimados, ativa e passivamente, para uma certa lide, deveremos
olhar para trás, buscar a relação jurídica de direito material que deu origem à
demanda e ali procurá-los: acaso estejam eles figurando como sujeitos-termos
dessa relação, é de se os considerar legitimados; caso contrário, não". - In
Introdução à Teoria Geral do Processo Civil. 2ª edição. São Paulo: Max Limonad,
2003, p. 177.
[4] Ao
se referir à competência para instituição do tributo, estamos utilizando a
palavra competência no sentido de aptidão para legislar, ou seja, inserir
inauguralmente no ordenamento jurídico regras matrizes de incidência
tributária.
[5]
Art. 156-A. Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de
competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios.
Art.
195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta
e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes
contribuições sociais:
V -
sobre bens e serviços, nos termos de lei complementar.
[6] A
palavra arrecadar está sendo utilizada no sentido de prática de atos que
objetivam o pagamento do tributo, não estamos nos referindo para onde vai essa
receita ou ao detentor da chave do cofre da arrecadação da receita (Comitê
Gestor), mas sim aos sujeitos que promoverão os atos para que o dinheiro entre
nesse cofre; portanto, que figurarão na relação material tributária.
[7]
Nesse tocante, valiosas as lições de Paulo de Barros Carvalho:
"Uma
coisa é poder legislar, desenhando o perfil jurídico de um gravame ou regulando
os expedientes necessários à sua funcionalidade; outra é reunir credenciais
para integrar a relação jurídica, no tópico de sujeito ativo. (.) a capacidade
tributária ativa, que tem como contranota a capacidade tributária passiva, é
tema a ser considerado no ensejo do desempenho das competências, quando o
legislador elege as pessoas componentes do vínculo abstrato, que se instala no
instante em que acontece, no mundo físico e social, o fato previsto na hipótese
normativa". - In Direito Tributário, Linguagem e Método. 8ª edição. São Paulo:
Noeses, 2021, p. 255.
[8] À
luz do art. 195, V CF/1988, competência tributária e capacidade tributária
ativa da CBS coincidem na pessoa política da União, enquanto, nos termos do
art. 156-B, § 2º, V, da CF/1988, a capacidade tributária ativa do IBS foi
depositada nas respectivas administrações tributárias e procuradorias dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Veja-se o teor do artigo 156-B,
§ 2º, V, da CF/1988:
Art.
156-B. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios exercerão de forma
integrada, exclusivamente por meio do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e
Serviços, nos termos e limites estabelecidos nesta Constituição e em lei
complementar, as seguintes competências administrativas relativas ao imposto de
que trata o art. 156-A:
§2º Na
forma da lei complementar:
V - a
fiscalização, o lançamento, a cobrança, a representação administrativa e a
representação judicial relativos ao imposto serão realizados, no âmbito de suas
respectivas competências, pelas administrações tributárias e procuradorias dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que poderão definir hipóteses de
delegação ou de compartilhamento de competências, cabendo ao Comitê Gestor a
coordenação dessas atividades administrativas com vistas à integração entre os
entes federativos;
[9]
Lembremos o que estabelece o artigo 18 do Código de Processo Civil/2015:
Art.
18. Ninguém poderá pleitear direito alheio em nome próprio, salvo quando
autorizado pelo ordenamento jurídico.
[10] A
respeito da distinção entre ação exacional e antiexacional, sugerimos a leitura
dos seguintes artigos:
https://www.conjur.com.br/2021-mar-09/opiniao-processo-positivacao-acoes-conflitos-tributarios/
https://www.conjur.com.br/2021-mai-04/paulo-conrado-medidas-exacionais-antiexacionais/
Autora: Camila Campos Vergueiro. É
advogada, doutora pela Unimar, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP,
professora do mestrado e do doutorado do PPGD da Unimar, professora do Curso de
Especialização do Ibet, do programa de Pós-graduação lato sensu da PUC-Cogeae,
da Fundação Getúlio Vargas (FGV LAW) e do Complexo Educacional Damásio de
Jesus, professora e coordenadora do curso de Extensão Processo Tributário
Analítico e Reforma Tributária do Ibet e coordenadora do grupo de estudos de
Processo Tributário Analítico e Jurisprudência Analítica do Ibet.