O fim do
manicômio tributário? A transição para o IVA traz mais dúvidas do que certezas.
Analisamos os impactos práticos e os custos ocultos que podem definir o futuro
do seu negócio.
Há muito se fala no Brasil que o nosso
sistema tributário é um labirinto, um emaranhado de regras que beira o insano.
Alguns o chamam de "manicômio tributário", e a alcunha, por mais
severa que seja, parece ter resistido estoicamente ao tempo, à despeito de
todas as promessas de simplificação. Empresários, contadores e advogados
tributaristas sabem bem que a cada amanhecer a roleta da complexidade gira,
trazendo novas interpretações, novas autuações e, invariavelmente, novas dores
de cabeça. Uma realidade que, para o investidor estrangeiro, soa mais como um
conto de Kafka do que como um ambiente de negócios promissor.
Nesse cenário de permanente perplexidade, a
promulgação da EC 132/23, fruto da tão aguardada Reforma Tributária, surge como
a promessa de uma nova era. A substituição de cinco tributos sobre o consumo
(PIS, COFINS, IPI, ICMS e ISS) por dois IVA - Impostos sobre Valor Agregado - a
CBS - Contribuição sobre Bens e Serviços, de competência federal, e o IBS -
Imposto sobre Bens e Serviços, de competência compartilhada entre Estados e
Municípios - é apresentada como a redenção de nossa secular disfuncionalidade.
A Ágora, na Grécia Antiga, era o espaço público onde se discutia e se decidia o
destino da pólis; espera-se que o IVA nos conduza a uma ágora fiscal de racionalidade
e transparência.
Contudo, a jornada do manicômio à ágora não
é um salto quântico; é um balé complexo de transição, que se estenderá por anos
e exigirá de cada agente econômico uma visão estratégica que transcenda a mera
conformidade. Este artigo não se propõe a ser mais um compêndio de normas, mas
uma análise crítica sobre os meandros dessa transição, os desafios inerentes à
dualidade do IVA e o que, de fato, aguarda o contribuinte nessa década de
incertezas e adaptação.
Em verdade, a narrativa oficial pintou um
quadro de um sistema tributário mais justo e eficiente. No entanto, o que a EC
132/23 realmente nos entregou foi um esqueleto normativo, uma "tela em
branco" para a verdadeira complexidade que será escrita nas futuras leis complementares.
É como se tivéssemos recebido o título de um livro, mas o enredo, os
personagens e, mais importante, o final, ainda estão por ser criados, em
capítulos esparsos e sujeitos a interpretações diversas.
Gênese da confusão: O IVA dual e a
delegação perpétua
Para bem compreender o presente e antecipar
o futuro, é preciso revisitar o passado. Por décadas, assistimos a tentativas
frustradas de reformar o sistema tributário, cada uma esbarrando em interesses
federativos e setoriais. O resultado é a máquina esmagadora que conhecemos:
cumulatividade, guerra fiscal predatória, insegurança jurídica e um custo de
compliance astronômico. O Brasil, afinal, não é para amadores.
A EC 132/23 traz em seu bojo a proposta de
um IVA de base ampla, cobrado no destino, com não cumulatividade plena. A ideia
é, em tese, louvável: desonerar investimentos, reduzir o contencioso e
simplificar a vida do contribuinte. Mas, como o diabo reside nos detalhes e, no
Brasil, os detalhes frequentemente se multiplicam, a proposta original de um
IVA único cedeu espaço a um modelo dual: CBS e IBS.
A grande sacada da reforma é a criação do
IVA, desmembrado em dois tributos: a CBS - Contribuição sobre Bens e Serviços,
de competência federal, e o IBS - Imposto sobre Bens e Serviços, de competência
estadual e municipal. Essa arquitetura dual, fruto de um complexo arranjo
político, já introduz uma camada de complexidade inerente. Não teremos um IVA
único, como na maioria dos países que adotam o sistema, mas sim dois, com
regras que, embora espelhadas, poderão gerar fricções e divergências
interpretativas.
A "mágica" da simplificação foi
delegada. A EC 132/23 estabeleceu os princípios gerais, as alíquotas de
referência e algumas diretrizes, mas deixou a cargo de leis complementares a
definição de aspectos cruciais como:
-As alíquotas específicas para cada setor e
produto;
-A lista exata de bens e serviços que terão
tratamento diferenciado (imunidades, isenções, alíquotas reduzidas);
-As regras detalhadas de apropriação de
créditos, que são o coração do sistema não-cumulativo;
-A gestão do contencioso administrativo e
judicial;
-O funcionamento do Fundo de Compensação de
Benefícios Fiscais e do Fundo de Desenvolvimento Regional.
Essa delegação massiva significa que a
incerteza jurídica persistirá por anos, talvez décadas. Empresas e consultores
terão de navegar por um mar de normas futuras, muitas delas ainda não escritas,
e que podem mudar o jogo a qualquer momento. A "simplificação"
prometida é, na verdade, uma complexidade adiada e pulverizada.
A transição de uma década: Do carro
de boi ao jato... Queimando dinheiro
O grande paradoxo da reforma tributária é
que, para se chegar à utopia do IVA unificado (ou dual), teremos que atravessar
um purgatório de transição que se estenderá até 2032. Um período de
coexistência de regimes tributários - o velho e o novo - que promete ser um
teste de resiliência e adaptabilidade para empresas de todos os portes e
setores.
O ponto de partida é 2026, com a introdução
das alíquotas de teste da CBS e do IBS. A ideia é medir o comportamento da
arrecadação antes da "virada" completa. Para os desavisados, esse
"teste" pode ser interpretado como um período de observação passiva.
Ledo engano. Nesses anos iniciais, enquanto as alíquotas serão marginais, a
complexidade normativa aumentará exponencialmente, exigindo que o contribuinte
opere sob duas lógicas distintas e complexas simultaneamente. É como aprender a
pilotar um jato enquanto se dirige um carro de boi, tudo ao mesmo tempo.
Este é um capítulo à parte no livro do
horror dessa transição. Durante esses anos, as empresas terão que operar sob
dois regimes tributários simultaneamente: o atual (PIS, COFINS, IPI, ICMS, ISS)
e o novo (CBS e IBS). Isso não é apenas um desafio contábil; é um pesadelo
operacional.
Imagine a necessidade de:
-Manter sistemas de ERP e softwares fiscais
atualizados para calcular impostos sob duas lógicas distintas e paralelas;
-Treinar equipes para entender e aplicar
regras de crédito e débito que coexistem, mas não se misturam;
-Gerenciar o fluxo de caixa sob a incerteza
da apropriação e ressarcimento de créditos acumulados, especialmente no início
da transição.
E o custo? Projeções de especialistas
indicam que a alíquota combinada do IVA (CBS + IBS) no Brasil poderá ser uma
das mais altas do mundo, talvez superando os 27%. Para o setor de serviços, em
particular, que hoje se beneficia de regimes cumulativos e alíquotas mais
baixas, o impacto pode ser devastador. A mudança para a não-cumulatividade
plena, embora teoricamente justa, pode significar um aumento substancial da
carga tributária efetiva, forçando uma reavaliação completa de modelos de
negócios e preços. O "jato" prometido pode até ser mais rápido, mas o
combustível será proibitivamente caro, e a pista de decolagem, um canteiro de
obras.
Implicações práticas: Navegando na
tempestade perfeita
Para as empresas, a reforma não é um evento
futuro, mas uma realidade que exige ação imediata. As implicações práticas são
vastas e multifacetadas:
-Revisão de sistemas e processos (IT &
ERP): A espinha dorsal de qualquer empresa moderna, seus sistemas de gestão
(ERP), precisarão de uma reformulação massiva. A lógica de cálculo de impostos,
a apropriação de créditos, a emissão de documentos fiscais e a geração de
obrigações acessórias mudarão drasticamente. Isso representa investimentos
significativos em tecnologia e tempo;
-Gestão de créditos tributários: A
não-cumulatividade é a alma do IVA, permitindo que as empresas se creditem dos
impostos pagos nas etapas anteriores da cadeia. No entanto, a complexidade
reside na definição do que gera crédito e como ele será apropriado. Empresas
precisarão de uma análise minuciosa de suas cadeias de suprimentos e estruturas
de custos para maximizar a recuperação de créditos e evitar perdas;
-Planejamento tributário e estratégia de
negócios: A reforma forçará uma reavaliação de toda a estratégia de preços,
localização de fábricas e centros de distribuição, e até mesmo a estrutura
jurídica das operações. A otimização fiscal deixará de ser uma questão de "enquadramento"
e passará a ser uma questão de "engenharia" da cadeia de valor;
Contencioso e compliance: Com a avalanche de
novas normas e a inevitável falta de clareza inicial, o volume de contencioso administrativo
e judicial tende a explodir. Empresas precisarão de uma área de compliance
robusta e de um suporte jurídico ágil para defender suas posições e garantir a
correta aplicação das novas regras;
Treinamento e capacitação: Equipes
financeiras, contábeis, jurídicas e até comerciais precisarão ser intensamente
treinadas para entender o novo paradigma. O sucesso da adaptação dependerá
diretamente da capacidade interna de absorver e aplicar as novas regras.
Conclusão: A batalha começou, mas a guerra
está longe do fim
A EC 132/23 não é o fim da jornada, mas o
primeiro passo em um caminho longo, incerto e, para muitos, doloroso. O
"Agora" do IVA é um campo de batalha onde a informação, a antecipação
e o aconselhamento especializado serão as armas mais valiosas.
É imperativo que as empresas comecem a se
preparar imediatamente. Isso inclui:
-Realizar diagnósticos aprofundados do
impacto da reforma em seus negócios;
-Modelar cenários de alíquotas e seus
efeitos na carga tributária;
-Mapear as necessidades de adaptação de
sistemas e processos;
-Estabelecer um plano de ação robusto para
a transição;
Neste cenário de complexidade crescente, a
expertise jurídica e torna-se não apenas um diferencial, mas uma necessidade
estratégica. Navegar por este novo manicômio tributário exigirá mais do que
nunca um guia experiente. A suscitada simplificação prometida mal começou, e a
guerra contra a complexidade está longe de terminar.
Autor:
Lucas Pereira Santos Parreira. Sócio no Escritório Rosenthal e Sarfatis
Metta. Mestre em Direito Empresarial e Especialista em Direito Tributário,
Direito Civil e Direito Contratual.
Fonte:
https://www.migalhas.com.br/depeso/434455/transicao-do-manicomio-tributario-para-o-iva-cbs-e-ibs-em-foco