A reforma tributária
do consumo (veiculada pela Emenda Constitucional nº 132/2023 e regulamentada
pela Lei Complementar nº 214/2025) instituiu um regime específico de tributação
das operações com bens imóveis, inovando, inclusive, nas situações de aquisição
de imóveis em leilão judicial. Sob a vigência da legislação anterior, a compra
de imóvel em leilão judicial não configurava, por si só, fato gerador de
tributos sobre o consumo.
Antes da reforma
tributária sobre o consumo, a incidência de tributos ocorria apenas em caso de
revenda posterior do imóvel, com tributação sobre o ganho de capital pelo
imposto de renda. No caso de pessoas físicas (artigos 21 e 22 da Lei nº
9.250/95), tal ganho é tributado com alíquotas progressivas de IRPF, de 15% a
22,5%, a depender do valor da venda. No caso de pessoa jurídica, a tributação
também recai apenas na revenda, conforme o regime de apuração adotado: lucro
presumido (com presunções entre 8%, para IRPJ, e 12% para CSL, sobre a receita
bruta, nos termos da Lei nº 9.249/95) ou lucro real (sobre o lucro efetivo
apurado, nos termos da Lei nº 8.981/95).
Essa tributação do
ganho de capital pelo imposto de renda continua a existir. No entanto, a
atividade imobiliária passa a contar com dois tributos adicionais: o Imposto
sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS),
dentre outras, sobre a arrematação de imóvel em leilão e sobre a locação
imobiliária, duas hipóteses até então desprovidas de tributação do consumo.
Ou seja, não havia,
até então, previsão legal (na legislação de ICMS, ISS, PIS/Cofins) que
considerasse a arrematação judicial como operação de fornecimento tributável,
tampouco que atribuísse ao arrematante a condição de contribuinte do imposto
sobre consumo.
Fato gerador do IBS
e da IBS
No seu artigo 10,
§1º, inciso V, alínea 'b', a Lei Complementar nº 214/2025 estabelece que se
considera ocorrido o fornecimento, ou seja, o fato gerador do IBS e da CBS, no
momento da aquisição do bem em leilão judicial. Já o seu artigo 21, inciso II,
alínea 'b', define o arrematante, caracterizado como adquirente de bem em
leilão judicial, como contribuinte do IBS e da CBS.
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Essa sistemática se
fundamenta no artigo 4º, §2º, inciso I da Lei Complementar nº 214/25, que
considera como operação onerosa - e, portanto, tributável - a alienação a
qualquer título, inclusive por leilão judicial.
Veja-se que há uma
incoerência sistemática nessa tributação: de um lado, o artigo 251 da Lei
Complementar nº 214/25 estabelece critérios para enquadramento de pessoa física
como contribuinte; de outro lado, o seu artigo 4º tributa o arrematante de
imóvel em leilão, sem nada dizer sobre ser ele contribuinte, ou não, de
IBS/CBS.
A respeito dos
critérios de habitualidade para a incidência de tributação em operações de
venda de imóveis realizadas por pessoa física, a Lei Complementar nº 214 deixa
claro que, para que haja classificação como contribuinte de IBS e CBS, a pessoa
física deve realizar operações com mais de três imóveis distintos no
ano-calendário anterior.
Assim, se a pessoa
física arrematar um imóvel, será considerada contribuinte no momento da compra,
sem serem considerados os critérios de habitualidade de outras operações de
compra e venda.
Este cenário é
diverso se o arrematante vier a revender o imóvel, na medida em que, nessa
situação só será considerada contribuinte se cumprir os critérios do artigo
251, sendo tributada pelo regime específico.
Importa destacar
que, nesta operação de revenda, a base de cálculo do IBS e da CBS será o valor
integral da operação (e não o ganho de capital), conforme artigo 12 da LC
214/25.
Violação do
princípio da isonomia
A tributação
imediata da arrematação por pessoa física - sem observar os critérios de
habitualidade exigidos para outras operações imobiliárias - cria tratamento
desigual entre situações equivalentes, violando o princípio da isonomia. Da
mesma forma, se verifica também violação à capacidade contributiva real e
efetiva. A pessoa física que adquire um imóvel isoladamente não revela,
necessariamente, riqueza passível de tributação por um imposto sobre consumo.
Além disso, também
há uma potencial controvérsia na admissão pela legislação da possibilidade de
arbitramento do valor da operação (artigo 13, I, 'b', da LC 214/25), caso o
valor declarado na arrematação seja notoriamente inferior ao valor de mercado.
Neste ponto, é de se
relembrar que semelhante tentativa foi criada em relação ao ITBI. Instaurando-se
longo contencioso a respeito do tema do arbitramento de valor pelo fisco,
especialmente diante da prática reiterada de diversos municípios de fixar, de
forma unilateral, valores de referência para o imposto, muitas vezes superiores
ao valor efetivamente praticado na operação de transmissão.
Esse conflito foi
definitivamente solucionado de forma favorável aos contribuintes pelo Superior
Tribunal de Justiça no julgamento do Tema 1.113 dos Recursos Repetitivos (REsp
1.937.821/SP, julgado em 24/02/2022). A Corte, naquela oportunidade, fixou três
importantes teses: a base de cálculo do ITBI é o valor de mercado do imóvel
transmitido, entendido como aquele praticado em condições normais de mercado, e
não o valor venal de referência arbitrado pela municipalidade ou o valor
utilizado para o cálculo do IPTU; o valor declarado pelo contribuinte goza de
presunção de veracidade, sendo vedado ao Fisco substituí-lo sem a instauração
de processo administrativo regular, nos termos do artigo 148 do Código Tributário
Nacional (CTN); é ilegal a prática de arbitramento prévio e unilateral da base
de cálculo do ITBI pelo município, sem assegurar ao contribuinte o
contraditório e a ampla defesa.
Valor pago pelo
arrematante prevalece para o ITBI
Em especial, quanto
às operações de arrematação judicial de imóveis, o STJ tem reconhecido que o
valor pago pelo arrematante no leilão deve prevalecer como base de cálculo do
ITBI, salvo prova inequívoca de subavaliação obtida em processo administrativo
específico. Este entendimento é coerente com a natureza pública e concorrencial
dos leilões judiciais, em que o valor de venda geralmente corresponde à melhor
oferta obtida em certame, ainda que inferior ao valor de mercado estimado.
Veja-se, portanto,
que a Lei Complementar nº 214/2025 vai em claro desencontro com o entendimento
fixado pelo STJ tanto no Tema 1.113, quanto em decisões recentes acerca de
valor pago em leilão, criando possibilidade de instauração de mais um capítulo
no contencioso a respeito de arbitramento.
Destaca-se, por fim,
que a incidência do IBS e da CBS não exclui a incidência do ITBI, imposto
municipal previsto no artigo 156, II da Constituição. A LC 214/2025, em seu
artigo 4º, §5º, ratifica a possibilidade de dupla incidência. Essa
cumulatividade de tributos sobre a mesma operação (transmissão onerosa de bem
imóvel) levanta preocupações quanto à violação da repartição de competências
tributárias (artigo 154 da Constituição), ao efeito confiscatório dos tributos
(artigo 150, IV, da Constituição) e ao aumento da carga tributária efetiva
nessa atividade.
Por fim, do ponto de
vista econômico, é possível identificar que a nova sistemática de tributação
das aquisições de imóveis em leilão pode desincentivar a participação de
arrematantes, especialmente pessoas físicas, nos leilões judiciais, o que
compromete a eficiência dos processos de execução e a recuperação de crédito.
Trata-se, portanto, de uma mudança relevante que impacta não apenas os
contribuintes, mas também a dinâmica judicial e econômica da circulação de
imóveis.
Autora: Lara Hoeltz Sperb. É advogada, sócia da área
tributária do escritório Andrade Maia Advogados, com atuação focada no
contencioso administrativo e judicial de alta complexidade.