Senado ainda pode corrigir a rota
A
locação por temporada sempre existiu. O que mudou foi a escala. Plataformas
como Airbnb e Booking levaram esse mercado para o centro da economia do
turismo. Hoje há prédios pensados para esse fim, imóveis de lazer que "se
pagam" quando o dono não usa e, ainda, moradores que alugam o próprio
apartamento por alguns dias enquanto viajam.
A
habitualidade e o volume variam muito: de um anúncio por ano a dezenas de
reservas por mês. O ponto central, porém, é simples: essa oferta disputa o
mesmo hóspede de hotéis e pousadas, não o inquilino de longa permanência.
Se
o mercado relevante é o da hospedagem, a bússola jurídica e econômica é a
neutralidade - princípio inscrito na reforma tributária do consumo (EC
132/2023) e detalhado na LC 214/2025. Neutralidade significa equilibrar a
régua: mesma carga para atividades que concorrem entre si, sem preferências
artificiais. O desafio é desenhar isso sem impor a mesma papelada.
Hotelaria
é, em regra, atividade empresarial organizada; a temporada, via de regra, é
pulverizada, com proprietários de uma ou poucas unidades. Tratar ambos com as
mesmas obrigações acessórias produz ineficiência; tratá-los com cargas
diferentes, distorce preços e sufoca a concorrência.
A
boa notícia é que o arcabouço já deu alguns passos na direção correta. O
projeto que originou a LC 214 (o antigo PLP 68) enquadrou a locação por
temporada no regime da hotelaria para fins de tributação do consumo. Tradução:
quando o fornecedor já está no regime regular de IBS/CBS, a operação de
temporada segue a lógica não cumulativa típica de hospedagem (débito menos
crédito).
Em
paralelo, para locação residencial e comercial, o Congresso introduziu critérios
objetivos para caracterizar a pessoa física como contribuinte no regime de bens
imóveis: receita anual acima de R$ 240 mil e exploração de mais de três
imóveis. Antes disso, valia a regra geral de "atividade econômica"
(habitualidade/volume) para todas as locações.
Daí
nasce a dúvida que a prática expõe: devem valer os mesmos gatilhos para
caracterização como contribuinte para a temporada e para a locação residencial?
A lógica econômica responde "não". Hotéis e pousadas não podem escolher não ser
contribuintes só porque faturam menos de R$ 240 mil. Logo, por neutralidade, a
temporada não deveria herdar o "abrigo" de PF não contribuinte típico da
locação residencial. O concorrente da temporada é a hotelaria, não a moradia.
Ocorre
que o relatório do PLP 108 aprovado na CCJ do Senado caminhou em sentido
inverso: determinou somar receitas e quantidade de imóveis de temporada aos de
locação residencial e comercial para definir se a pessoa física é contribuinte.
O efeito colateral é explícito: temporada até R$ 240 mil/ano caberia fora do
regime, enquanto hotéis e pensões sempre estão dentro. É a negação da
neutralidade.
E
pode trazer mais um problema: fechar a porta do Simples Nacional para quem
opera temporada como empresa. Pelo regime do Simples, hotelaria é admitida, mas
locação de imóveis próprios é vedada. Se a lei tratar a temporada como
"locação" para fins de enquadramento - embora tribute "como hotelaria" -
cria-se um beco regulatório: cobra-se como hospedagem, mas proíbe-se o regime
simplificado próprio de hospedagem.
Neutralidade
exige simetria de lógica. Se a locação por temporada é hospedagem do ponto de
vista do consumidor, ela deve pagar como hospedagem e deve ser contribuinte a
partir das mesmas exigências feitas a quem pretende fornecer serviço de
hospedagem, ponto. A diferença está na escala e na capacidade de conformidade -
e é aí que entra a política pública inteligente.
Dois equívocos muito comuns aparecem nesse debate:
Equívoco
1: Temporada é só locação residencial com outro nome; logo, aplica-se o mesmo
limite de R$ 240 mil e três imóveis
Resposta: Do lado da
demanda, temporada não substitui moradia; substitui diária de hotel. Misturar
critérios produz concorrência desleal a favor da temporada. A LC 214 já
reconheceu a natureza econômica ao remeter a temporada ao regime da hotelaria
quando o fornecedor está no regime regular. O que falta é coerência na porta de
entrada: definir quem é contribuinte à luz do mercado de hospedagem, não do
mercado de locação residencial.
Equívoco
2: Para ser justo e arrecadar mais, todo anfitrião deve virar contribuinte
regular
Resposta: Errado por
necessidade de eficiência de administração tributária. Pense no morador de
Copacabana que aluga 10 dias no ano enquanto viaja. Transformá-lo em
contribuinte de débito e crédito abre a porta para crédito sobre imóvel,
mobiliário, energia - e força o Fisco a criar rateios sofisticados por período
efetivo de locação, sob risco de tributação negativa ou litigiosidade. Custo
alto para pouco resultado. É muito mais eficaz cobrar na plataforma, que já
organiza dados, pagamentos e repasses.
Qual é, então, o caminho de política pública que
entrega neutralidade sem burocracia?
O
ideal seria a criação de um regime específico simplificado. Um regime
cumulativo para temporada via plataformas/intermediários, com retenção de
IBS/CBS a uma alíquota única que espelhe a carga líquida média da atividade,
desonerando o anfitrião de obrigações acessórias. Se o proprietário optar por
operar sem intermediário e atingir porte/recorrência típicos de empresa, entra
no regime não cumulativo padrão, como a hotelaria.
Na
falta do regime específico sugerido, deve-se corrigir o PLP 108: retirar a
regra que soma temporada aos limites da locação residencial/comercial para
pessoa física contribuinte. Em vez disso, alinhar os critérios de enquadramento
da temporada aos da hotelaria: se a pousada não tem "zona de exceção", o
concorrente também não deve ter. Isso evita a quebra de neutralidade e resolve
o paradoxo do Simples (hospedagem pode; locação, não).
É
preciso, ainda, manter simplicidade onde importa: preservar os critérios
objetivos de PF contribuinte apenas para a locação residencial/comercial de
longo prazo, que é outro nicho, com outra lógica de demanda e outra estrutura
de custos.
Vale
reforçar que a neutralidade não é sinônimo de simetria burocrática. É possível
- e desejável - cobrar igual de quem concorre, com obrigações diferentes
conforme a escala. Plataformas podem recolher de forma centralizada; anfitriões
eventuais não precisam saber o que é "crédito de ativo imobilizado". Ao mesmo
tempo, quem profissionaliza oferta de temporada tem de jogar o jogo empresarial
da hotelaria: débito, crédito, nota fiscal, conformidade.
No
fim, o que está em jogo é a consistência do novo sistema. Ao equiparar a
temporada à hotelaria na tributação, a LC 214 acertou no alvo. Ao puxar a
temporada para dentro dos limites da locação residencial para definir quem é
contribuinte, o relatório da CCJ tirou a bússola do prumo.
O
Senado ainda pode corrigir a rota. O consumidor continuará escolhendo entre
hotel e temporada conforme preço, localização e serviço - não conforme uma
vantagem tributária artificial. E o anfitrião eventual seguirá sendo o que
sempre foi: alguém que cede o espaço por poucos dias, sem virar, por isso, um
especialista em apuração de créditos.
Precisamos
olhar para o princípio da neutralidade como bússola, em conjunto com a
razoabilidade. Se a locação por temporada concorre com a hotelaria, paga como
hotelaria. E, para quem aluga esporadicamente, recolhe pela plataforma -
simples, proporcional e neutro. É assim que se protege a concorrência, a
arrecadação e o tempo do cidadão.
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Autores:
Rodrigo Spada, Auditor fiscal da Receita Estadual de São Paulo e
presidente da Febrafite (Associação Nacional das Associações de Fiscais de
Tributos Estaduais) e da Afresp (Associação dos Auditores Fiscais da Receita
Estadual de São Paulo). Formado em Engenharia de Produção pela UFSCar e em
Direito pela Unesp, com MBA em Gestão Empresarial pela FIA
Jefferson Valentin, Professor, auditor fiscal da Receita Estadual de São
Paulo. Bacharel em Ciências Contábeis, mestre e doutorando em Economia